A Cidade e as Serras -
1901
(Eça de Queirós )
1)
ÉPOCA LITERÁRIA:
Realismo/Naturalismo, 3ª fase do autor (ironia madura e menos ácida, se for
comparada a sua 2ª fase).
2)
NARRADOR: 1ª pessoa,
narrador testemunha e deuteragonista ( é personagem, mas não é protagonista).
3)
CENÁRIO:França (Paris,
Av. Campos Elíseos, 202); Portugal (Tormes e Guiães, ambiente rural).
4)
VOCABULÁRIO: clássico,
formal, permeado de termos franceses, ingleses, espanhóis (estrangeirismos).
5)
FIGURAS DE LINGUAGEM: hipálages
(“puída tristeza do tapete”, “erudita nave da biblioteca”),
prosopopeias que causam efeitos impressionistas (“cervejarias filosóficas”,
“silêncio enrugado”), paradoxos (“astuta candura”), metonímias (“sedas
roçagaram a entrada da copa”), ironia, etc.
6) RECURSOS LITERÁRIOS
1) Intertextualidade e Paródia (citações de variadas obras, com
intenção cômica);
2) Zoomorfismo que causa efeito expressionista e caricatural (“Conde
de Tréves, um homem esgrouviado, de face rechupada, sob uma fonte rotunda e
amarela como um melão...” ou “É uma bela
moça, mas uma bruta...Não há ali mais poesia, nem mais sensibilidade,
nem mesmo mais beleza do que numa linda
vaca turina. Merece o seu nome de Ana Vaqueira. );”
3) Descritivismo (cenário e personagem);
4) Uso expressivo do adjetivo e do advérbio;
5) Associação do objetivo e do subjetivo, (“inverno escuro e
pessimista”);
6) Romance Tese: “suma ciência x suma potência = suma felicidade”.
RESUMO
DA OBRA
Ajuste da civilização
O romance é
escrito em primeira pessoa por José Fernandes, um personagem secundário. O
narrador centraliza seu interesse na figura de um certo Jacinto, descrevendo-o
como um homem extremamente forte e rico, que, embora tenha nascido em Paris, no
202 dos Campos Elíseos, tem seus proventos recolhidos de Portugal, onde a
família possui extensas terras, desde os tempos de D. Dinis, com plantações e
produção de vinho, cortiça e oliveira, que lhe rendem bem. O avô de Jacinto,
também Jacinto, gordo e rico, a quem chamavam D. Galião, era um fanático
miguelista. Quando D. Miguel deixou o poder, Jacinto Galião exilou-se
voluntariamente em Paris, lá morrendo de indigestão. D. Angelina Fafes, após a
morte do marido, não regressou a Portugal, e, em Paris, criou seu filho, o
franzino e adoentado Cintinho que se casou com a filha de um desembargador,
nascendo desta união nosso protagonista.
Desde pequeno
Jacinto brilhara, quer por sua inteligência, quer por sua capacidade. Aos 23
anos tornou-se um soberbo rapaz, vestido impecavelmente, cabelos e bigodes bem
tratados, e feliz da vida. Tudo de melhor acontecia com ele, sendo chamado
pelos companheiros de “Príncipe da Grã-Ventura”. Positivista animado, Jacinto
defendia a idéia de que “o homem só é superiormente feliz quando é
superiormente civilizado”. A maior preocupação de Jacinto era defender a tese
de que a civilização é cidade grande, é máquina e progresso que chegavam
através do fonógrafo, do telefone cujos fios cortam milhares de ruas, barulhos
de veículos, multidões... Civilização é enxergar à frente.
“Se
agora, em vez destes vidros simples, eu usasse os de meu telescópio, de
composição mais científica, poderia avistar além, no planeta Marte, os mares,
as neves, os canais, o recorte dos golfos, toda a geografia de um astro que
circula a milhares de léguas dos Campos Elísios. É outra noção, e tremenda!
Tens aqui, pois, o olho primitivo, o da natureza, elevado pela Civilização à
sua máxima potência da visão. E desde já, pelo lado do olho, portanto, eu,
civilizado, sou mais feliz que o incivilizado, porque descubro realidades do
universo que ele não suspeita e de que está privado. Aplica esta prova a todos
os órgãos e compreende o meu princípio. Enquanto à inteligência, e à felicidade
que dela se tira pela incansável acumulação das noções, só te peço que compares
Renan e o Grilo... Claro é, portanto, que nos devemos cercar de Civilização nas
máximas proporções para gozar nas máximas proporções a vantagem de viver.”
Em fevereiro de 1880, Zé Fernandes foi
chamado pelo tio e parte para Guiães e, somente após sete anos de vida na
província, retorna e reencontra Jacinto no 202 dos Campos Elíseos. O narrador
presenciou coisas espantosas: um elevador para ligar dois andares do palacete;
no gabinete de trabalho havia aparelhos mecânicos cheios de artifício; e,
enquanto Jacinto escreve para Madame d’Oriol, José Fernandes visita uma enorme
biblioteca de trinta mil títulos, os mais diversos possíveis, dos mais
renomados autores às mais diferentes ciências. A visita termina com uma
refeição em que foram servidas as mais sofisticadas iguarias e um convite de
Jacinto ao narrador que ele se hospede no 202.
Primeiros desencantos
Zé Fernandes,
a partir daí, pôde observar com maior atenção o amigo; suas intensas atividades
o desgastavam e, com o passar do tempo, constatou que Jacinto foi perdendo a
credulidade, percebendo a futilidade das pessoas com quem convivia, a
inutilidade de muitas coisas da sua tão decantada civilização. Nos raros
momentos em que conseguiam passear, confessava ao amigo que o barulho das ruas
o incomodava, a multidão o molestava: ele atravessava um período de nítido
desencanto. Alguns incidentes contribuíram sobremaneira para afetar o estado de
ânimo de Jacinto: o rompimento de um dos tubos da sala de banho, fazendo jorrar
água quente por todo o quarto, inundando os tapetes, foi o bastante para
aparecer uma pilha de telegramas, alguns inclusive com um riso sarcástico, com
o do Grao-Duque Casimiro, dizendo que não mais apareceria pelo 202 sem que
tivesse uma bóia de salvação.
As reuniões
sociais estavam ficando maçantes. Em uma recepção ao Grão-Duque, jacinto já não
agüentava o farfalhar das sedas das mulheres quando lhes explicava o uso dos
diferentes aparelhos, o tetrafone, o numerador de páginas, o microfone... O
criado veio lhe informar que o peixe a ser servido ficara preso no elevador e
os convidados puseram-se a pescá-lo, inutilmente, porque o peixe acabou não
indo para a mesa, fato que deixou ainda mais aborrecido o anfitrião.
Claramente percebia eu que o meu Jacinto
atravessava uma densa névoa de tédio, tão densa, e ele tão afundado na sua mole
densidade, que as glórias ou os tormentos de um camarada não o comoviam, como
muito remotas, inatingíveis, separadas da sua sensibilidade por imensas camadas
de algodão. Pobre Príncipe Grã-Ventura, tombado para o sofá de inércia, com os
pés no regaço do pedicuro! Em que lodoso fastio caíra, depois de renovar tão
brava mente todo o recheio mecânico e erudito do 202, na sua luta contra a
força e a matéria!
Preocupado, Zé Fernandes consulta o fiel
criado Grilo sobre o que está ocorrendo com Jacinto. O homem respondeu com
tamanho conhecimento de causa que espantou o narrador. Uma simples palavra
poderia definir todo o tédio de que era acometido: o patrão sofria de
“fartura”.
Certo dia,
enquanto esperavam ser recebidos por Madame d'Oriol, José Fernandes e Jacinto
subiram à Basílica do Sacré-Coeur, em construção no alto de Montmartre. Ao se
recostarem na borda do terraço, puderam contemplar Paris envolta em uma nuvem
cinzenta e fria, motivando profunda reflexões, pois a cidade - tão cheia de
vida, de ouro, de riquezas, de cultura e resplandecência, incluindo o soberbo
202, com todas as suas sofisticações - estava agora sucumbida sob as nuvens
cinzentas, a cidade não passava de uma ilusão.
(...) uma ilusão! E a mais amarga, porque o homem pensa ter na cidade a base de
toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto!
Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo e se tornou esse ser
ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto de ossos moles como trapos,
de nervos trêmulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentauros de
chumbo sem sangue, sem febre, sem viço, torto, corcunda - esse ser em que Deus , espantado , mal
pôde reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na Cidade findou a sua
liberdade moral; cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o
arremessa para uma dependência; pobre e subalterno, a sua vida é um constante
solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar: rico e superior como um Jacinto, a
sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimônias, prazer,
ritos, serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel... A
sua tranqüilidade (bem tão alto que Deus com ele recompensa os santos) onde
está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão ou
pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro! Alegria
como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante
ocupação de desejar - e que, nunca fartando o desejo, incessantemente padecem
de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos
logo na cidade se desumanizam! (...) Assim, meu Jacinto, na Cidade, nesta
criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e o carvão
tapa o céu, e agente vive acamada nos prédios com o paninho nas lojas, e a
claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames - o
homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem
liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si uma espírito que é
passivo como um escravo ou impudente como um histrião... E aqui tem o belo
Jacinto o que é a bela Cidade!
Zé
Fernandes continuou a filosofar, acrescentando preocupações de caráter pessoal,
indagando a posição dos pequenos que, como vermes, se arrastavam pelo chão,
enquanto os poderosos os massacravam; eles iam às óperas aquecidos, lançando
aos pobres não mais que algumas migalhas. Religiosamente, acreditava ser
necessário um novo Messias que ensinasse às multidões a humildade e a mansidão.
Só uma estreita e reluzente casta goza na
Cidade e os gozos especiais que ele a cria. O resto, a escura, imensa plebe, só
nela sofre, e com sofrimento especiais, que só nela existem! (...) A tua
Civilização reclama incansavelmente regalos e pompas, que só obterá, nesta
marga desarmonia social, se o capital der ao trabalho, por cada arquejante
esforço, uma migalha ratinhada. Irremediável é, pois, que incessantemente a
plebe sirva, a plebe pene! A sua esfalfada miséria é a condição do esplendor
sereno da Cidade. (...)
Pensativamente deixou a borda do terraço, como se a presença da Cidade,
estendida na planície, fosse escandalosa. E caminhamos devagar, sob a moleza
cinzenta da tarde, filosofando - considerando que para esta iniqüidade não
havia cura humana, trazida pelo esforço humano. Ah, os Efrains, os Trèves, os
vorazes e sombrios tubarões do mar humano, só abandonarão ou afrouxarão a
exploração das plebes, se uma influência celeste, por milagre novo, mais alto
que os milagres velhos, lhes converter as almas! O burguês triunfa, muito
forte, todo endurecido no pecado - e contra ele são impotentes os prantos dos
humanitários, os raciocínios dos lógicos, as bombas dos anarquistas. Para
amolecer tão duro granito só uma doçura divina. Eis pois a esperança da Terra
novamente posta num Messias!...
De Schopenhauer ao Eclesiastes: pessimismo
Como já havia
planejado, o narrador partiu para uma viagem pela Europa e, ao retornar,
procurou o amigo e tentou descobrir o que lhe passava na alma, pois encontrou-o
mais pessimista que nunca, depressão revelada pelas leituras do Eclesiastes e
do filósofo pessimista Schopenhauer. Nestas leituras, encontrava um certo amparo
ao comprovar que todo mal era resultante de uma lei universal e, a partir daí,
encontrou uma grata ocupação - maldizer a vida. Ao mesmo tempo, sobrecarregou
sua existência com fervores humanísticos. Mas de nada adiantava, pois Jacinto
estava desolado. No inverno escuro e pessimista, Jacinto acordou certa manhã e
comunicou a José Fernandes que estava de partida para Tormes. Decidiu viajar ao
receber uma carta de Silvério, seu procurador, que dizia estarem concluídos os
trabalhos de reerguimento da capela para onde seriam trasladados os restos
mortais de seus avós que ele não conhecera, mas que o 202 estava cheio de
recordações.
Os
preparativos para a viagem envolveram uma mudança da civilização para as
serras. Jacinto encaixotou camas de penas, banheiras, cortinas, divãs, tapetes,
livros, despachou tudo para poder enfrentar com conforto um mês nas serras.
Enquanto isso; renascia nele o amor pela cidade.
Partiram os
dois amigos de volta a Portugal. As cidades passavam pelas janelas do trem: da
França para a Espanha, da Espanha para Portugal... Tomado por uma suave emoção,
José Fernandes estava feliz em rever a pátria; Jacinto, aborrecido e enfadado
principalmente porque, em Medina (Espanha), as malas ficaram em compartimentos
errados quando foi feita a baldeação. O narrador, com o intuito de aclamar o
amigo, diz-lhe que a Companhia cuidaria de tudo. E ficaram os dois só com a
roupa do corpo. Enfim, chegaram a Tormes.
...e ambos em pé, às janelas, esperamos com
alvoroço a pequenina estação de Tormes, termo ditoso das nossas provações. Ela
apareceu enfim, clara e simples, à beira do rio, entre rochas, com sues vistoso
girassóis enchendo um jardinzinho breve, as duas altas figueiras assombreando o
pátio, e por trás, a serra coberta de velho e denso arvoredo.
Desembarcaram
em Tormes, onde o narrador encontrou o velho amigo Pimenta, chefe da estação.
Após apresentar-lhe o senhor de Tormes, indagou por Silvério, o procurador de
Jacinto em terras portuguesas. Começaram então outros desastres da viagem.
Silvério não os aguardava: havia partido há dois meses para o Castelo de Vide.
Os criados Grilo e Anatole, aparentemente estavam com as 23 malas em outro
compartimento, não foram encontrados, o trem apitou e partiu, deixando os dois
sem nada. Não havia cavalos para atravessarem a serra, pois Melchior, o
caseiro, não os esperava senão para o mês seguinte. Pimenta arranjou-lhes uma
égua e um burro e ambos seguiram serra cima, esquecendo, por alguns instante,
os infortúnios passados enquanto contemplavam a beleza da paisagem. O pior
ainda estava por acontecer: os caixotes despachados de Paris há quatro meses
não haviam chegado, e o mais civilizado dos homens estava totalmente à mercê
das serras. Como ninguém os esperava, a casa não estava pronta para recebê-los,
a reforma acontecia devagar, os telhados ainda continuavam sem telhas, a
vidraças sem vidros. Zé Fernandes sugeriu que rumassem para a casa de sua tia
Vicência em Guiães e Jacinto retrucou que ia mesmo para Lisboa.
Melchior
arranjou como pôde um jantarzinho, caseiro e simples, longe das comidas
sofisticadas, das taças de cristal, dos metais e porcelanas. Uma comida que
serviu para matar gostosamente a fome dos viajantes. O senhor de Tormes
regalou-se com o jantar que lhe parecera, à primeira vista, insuportável; e o
caseiro, diante das manifestações de regozijo perante a comida, pensou que seu
senhor passava fome em Paris.
O bom caseiro sinceramente cria que, perdido
nesses remotos Parises, o senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia
fome e minguava... E o meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima
fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em
louvores mais copiosos. Diante do louro frango assado no espeto e da salada
aquele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos
lábios de Platão, terminou por bradar: - "É divino!" Mas nada o
entusiasmava como um vinho de Tormes, caindo do alto, da bojuda infusa verde -
um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma,
que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele
orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de otimismo na
face, citou Virgílio:
- Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável desta
serras?
Após o
jantar, ambos ficaram contemplando o céu cheio de estrelas, passaram a ver os
astros que na cidade não se dignavam ou não conseguiam observar. O narrador
ia-se deixando levar por um contato tão estreito com a paisagem, que em breve
surgia uma identificação total do homem com a natureza e em tudo percebia-se
Deus, num claro processo panteísta muito comum entre os romântico e que Eça
passou a assumir.
- Oh Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?
- Não sei... E aquela, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral?
- Não sei.
Não sabíamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do
ventre de Coimbra, minha mãe espiritual. Ele, porque na sua biblioteca o
possuía trezentos e oito tratados sobre astronomia, e o saber assim acumulado,
forma um monte que nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que
aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava
a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão
pequeninos, somos a obra da mesma vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de
Noronha e Sande, constituímos modos diversos de um ser único, e as nossas
diversidades esparsas somam na mesma compacta unidade. Moléculas do mesmo todo,
governadas pela mesma lei, rolando para o mesmo fim... Do astro ao homem, do
homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro – tudo é o mesmo corpo,
onde circula como um sangue, o mesmo deus. E nenhum frêmito de vida, pormenor,
passa numa fibra desse sublime corpo, que se não repercuta em todas, até às
mais humildes, até às que parecem inertes e invitais. Quando um sol que não
avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio galho
de limoeiro, embaixo na horta, sente um secreto arrepio de morte; e, quando eu
bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno estremece, e
esse estremecimento percorre o inteiro Universo! Jacinto abateu rijamente a mão
no rebordo da janela. Eu gritei:
- Acredita! ...O sol tremeu.
E depois ( como eu notei) devíamos considerar que, sobre cada um desses grãos
de pó luminoso, existia uma criação, que incessantemente nasce, perece,
renasce.
O
cansaço vence os dois viajantes. José Fernandes adormece sob os apelos de
Jacinto para que lhe enviasse algumas peças brancas e lhe reservasse alojamento
em um bom hotel de Lisboa. Uma semana depois que José Fernandes havia partido
para Guiães, recebeu suas malas e imediatamente enviou um telegrama para
Lisboa, endereçado ao hotel Bragança, agradecendo pela bagagem que foi
encontrada e alegrando-se pelo amigo estar novamente gozando os privilégios de
seres civilizados. No entanto, não obteve resposta. Certo dia, o narrador voltando
de Flor da Malva, da casa de sua prima Joaninha, parou na venda de Manuel Rico,
e ficou sabendo algo surpreendente através do sobrinho de Melchior: Jacinto
permanecia em Tormes já há cinco semanas. Ao visitar Jacinto, José Fernandes o
encontrou totalmente mudado, física e mentalmente. Nada nele denunciava um
homem franzino; estava encorpado, corado, como um verdadeiro montês.
Mas o meu novíssimo amigo, debruçado da janela, batia as palmas – como Catão
para chamar os servos, na Roma simples. E gritava:
- Ana Vaqueira! Um copo de água, bem lavado, da fonte velha!
Pulei, imensamente divertido:
- Oh Jacinto! E as águas carbonatadas? E as fosfatadas? E as esterilizadas? E
as sódicas?...
O meu Príncipe atirou os ombros com um desdém soberbo. E aclamou a aparição de
um grande copo, todo embaciado pela frescura nevada da água refulgente, que uma
bela moça trazia num prato.
Um homem de bem com a vida
Era um outro
Jacinto a quem o campo já não mais era insignificante. Cada momento novo era
uma nova e alegre descoberta. Enfim, era um homem de bem com a sua vida.
Aproveitando a presença do amigo, Jacinto providenciou a transladação dos
corpos de seus antepassados para a Capelinha da Carriça, agora reconstruída. Zé
Fernandes, hábil observador do amigo, percebeu que Jacinto não se contentava em
ser o apreciador passivo dos encantos da natureza. Ele queria participar de
tudo, e lhe surgiam grandes idéias como encher pastos, construir currais
perfeitos, máquinas para produzir queijos...
Certo dia, ao
percorrer seus domínios, Jacinto conheceu o outro lado da serra: uma criança
muito franzina viera pedir socorro para a mãe agonizante. A partir desse
momento, as decisões de Jacinto tomaram novo rumo, pois ele começou a se
preocupar com o lado triste da serra, e passou a fazer caridade, reconstruir
casa, dar novo alento à vida dos humildes. Em uma das inúmeras visitas que lhe
fez o narrador, Jacinto confessou que pretendia introduzir um pouco de
civilização naqueles cantos tão rústicos. O povo da região começou a agradecer
as benfeitorias e logo passou a circular a lenda que o senhor de Tormes era D.
Sebastião que havia voltado para ressuscitar Portugal.
Convidado por
Zé Fernandes para o aniversário de tia Vicência, Jacinto encontraria aí a
oportunidade de conhecer seus vizinhos, outros proprietários. No entanto, a
recepção não foi aquilo que o narrador esperava. Havia uma frieza por parte dos
habitantes da região, exceto tia Vicência que o recebeu como verdadeiro sobrinho.
Ao terminarem a ceia, vieram a saber porquê daquela frieza: eles pensavam que o
senhor de Tormes fosse miguelista como o avô e que pretendia restituir D.
Miguel ao poder.
E só compreendi, na sala, quando o Dr. Alípio, com sua chávena de café e o
charuto fumegante, me disse, num daqueles seus olhares finos, que lhe valiam a
alcunha de “Dr. Agudos:” – ‘Espero que ao menos, cá por Guiães, não se erga de
novo a forca!...’ E o mesmo fino olhar me indicava a D. Teotônio, que arrastara
Jacinto para entre as cortinas de uma janela, e discorria, com um ar de fé e de
mistério. Era o miguelismo, por Deus! O bom D. Teotônio considerava Jacinto
como um hereditário, ferrenho miguelista, - e na sua inesperada vinda ao solar
de Tormes, entrevia uma missão política, o começo de um a propaganda enérgica,
e o primeiro passo para uma tentativa de restauração. E na reserva daqueles
cavalheiros, ante o meu Príncipe, eu senti então a suspeita liberal, o receio
de uma influência rica, novas, nas eleições próximas, e a nascente irritação
contra as velhas idéias, representadas naquele moço, tão rico, de civilização
tão superior. Quase entornei o café, na alegre surpresa daquela sandice. E
retive o Melo Rebelo, que repunha a chávena vazia na bandeja, fitei, com um
pouco de riso, o “Dr. Agudo”.
Este jantar
serviu de pretexto para o narrador mostrar a mentalidade atrasada da sociedade
serrana e aquilo que a fazia sorrir Jacinto era, na verdade, um abismo entre a
ignorância e o progresso. A serra estava impregnada de uma mentalidade
retrógada, ainda absolutista, enquanto no final do século polvilhavam novas
teorias e doutrinas filosóficas e políticas. Tentou-se ainda um jogo de
voltarete para animar a noite, mas a ameaça de uma a tempestade levou os
convidados a baterem em retirada.
A manhã seguinte
estava fresca e clara, José Fernandes levou o amigo até Flor da Malva, para
visitar sua prima Joaninha que não pudera comparecer à reunião, pois o pai,
Adrião, estava acamado. No caminho, encontraram João Torrado, um velho eremita
que supôs estar diante de D. Sebastião. Esta figura ilustrava o lado da
profundidade do mito na mentalidade simples, saudando Jacinto como um profeta,
e tratando-o como “pai dos pobres”. Nele estão representadas a sabedoria e a
simplicidade do povo.
E um estranho velho, de longos cabelos brancos, barbas brancas, que lhe comiam
a face cor de tijolo, assomou no vão da porta, apoiado a um bordão, com uma
caixa de lata a tiracolo, e cravou em Jacinto dois olhinhos de um brilho negro,
que faiscavam. Era o tio João Torrado, o profeta da serra... Logo lhe estendi a
mão, que ele apertou, sem despregar de Jacinto os olhos, que se dilatavam mais
negros. Mandei vir outro copo, apresentei Jacinto, que corara, embaraçado.
- Pois aqui tem, o senhor de Tormes, que fez por aí todo esse bem à pobreza.
O velho atirou para ele bruscamente o braço, que saía cabeludo e quase negro,
de uma manga muito curta.
- A mão!
E quando Jacinto lha deu, depois de arrancar vivamente a luva, João Torrado
longamente lha reteve com um sacudir lento e pensativo murmurando:
- Mão real, mão de dar, mão que vem de cima, mão já rara!
Depois tomou o copo, que lhe oferecia o Torto, bebeu com imensa lentidão,
limpou as barbas, deu um jeito à correia que lhe prendia a caixa de lata, e
batendo com aponta do cajado no chão:
- Pois louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que por aqui me trouxe, que não
perdi o meu dia, e vi um homem!
Eu então debrucei-me para ele, mais em confidência:
- Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é certo você dizer por aí, pelos sítios, que
el-rei?D. Sebastião voltará?
O pitoresco velho apoiou as duas mãos sobre o cajado, o queixo da espalhada
barba sobre as mãos, e murmurava, sem nos olhar, como seguindo a procissão dos
seus pensamentos:
- Talvez voltasse, talvez não voltasse... Não se sabe quem vai, nem quem vem.
A chegada a Flor de Malva prepara o desfecho do romance. Joaninha, que não se
apresenta sequer ruma fala na narrativa, jovem de uma formosura ímpar estaria
destinada a ser a senhora de Tormes.
Mas, à porta, que de repente se abriu, apareceu minha prima Joaninha, corada do
passo e do vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no pescoço, que fundia
mais docemente, numa larga claridade, o esplendor branco da sua pele, e o louro
ondeado dos eus belos cabelos, - lindamente risonha, na surpresa que alargava
os seus largos, luminoso olhos negros, e trazendo ao colo uma criancinha, gorda
e cor-de-rosa, apenas coberta cima uma camisinha, de grandes laços azuis.
E foi assim que Jacinto, nessa tarde de setembro, na Flor da Malva, viu aquela
com quem casou, em maio, na capelinha de azulejos, quando o grande pé de
roseira se cobrira já de rosas.
Cinco anos se
passaram em plena felicidade por ver correrem por aquelas terras duas fidalgas
crianças, Teresinha e Jacinto. Os caixotes embarcados de Paris enfim chegaram a
Tormes e serviam para demonstrar o total equilíbrio do protagonista,
aproveitando o que poderia ser aproveitado e desprezando as inutilidades da
civilização, justificando deste modo a observação feita por Grilo: Sua
Excelência brotara”. Certamente Jacinto descobrira seus melhores valores: era
feliz e fazia os outros felizes. Algumas vezes Jacinto falou em levar a esposa
para conhecer o 202 e a civilização, mas o projeto, por um motivo ou por outro,
era sempre adiado.
Quem voltou a
Paris foi Zé Fernandes e lá, sentindo-se abandonado e entediado, descobriu uma
porção de fantoches a viverem uma vida falsa e mesquinha. Percebeu que os
antigos conhecidos eram seres frágeis e vazios, idênticos entre si e massas
impessoais, amorfas, feitas para agradar ou desagradar os outros conforme seus
interesses. Não suportando a cidade, retornou a Portugal. Este serrano que
anteriormente valorizava os encantos da civilização foi tomado pelos mesmos
sentimentos de Jacinto e confirmou uma simples verdade: no fundo, reabilitou
Eça de Queirós com o seu Portugal.
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