A HORA E A VEZ DE
AUGUSTO MATRAGA, NOVELA DO LIVRO SAGARANA (1946)
João Guimarães Rosa
Introdução
Classificadas como novelas, as “estórias” de
Sagarana apresentam como cenário o interior de Minas Gerais, com seus povoados,
vilas, vilarejos, arraiais, cidadelas, onde vivem fazendeiros, boiadeiros,
capiaus, valentões, jagunços, belas caboclas, caboclos apaixonados, padres,
“coronéis”, “majores”, crianças etc.
Guimarães Rosa pertence ao nosso Terceiro Momento
Moderno, apresentando uma prosa universalizante e fabulosa, que se diferencia
do regionalismo crítico e político do Segundo Momento, se comparado a
escritores como Graciliano Ramos, Rachel de Queirós e Jorge Amado.
A
hora e a vez de Augusto Matraga figura como último enredo apresentado no livro Sagarana
e, segundo Guimarães Rosa, história
mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras, (...). Quanto à
forma, representa para mim vitória íntima, pois, desde o começo do livro, o seu
estilo era o que eu procurava descobrir.
Quanto à linguagem, Rosa apresenta, desde os
primeiros trabalhos, uma novidade na construção linguística, que passa pelo
experimentalismo, pois ele une o popular ao erudito e o regional ao universal,
extraindo novos termos e sentidos poéticos por meio de figuras de linguagem
(onomatopeias, comparações, metáforas, sinestesias, anacolutos, aliterações,
assonâncias, etc.), neologismos, coloquialismos sertanejos, ditados populares,
aforismos inéditos, cantigas sertanejas e interjeições típicas do grupo social
apresentado (por exemplo, o bando de jagunços do Seu Joãzinho Bem-Bem)
Além da novidade linguística, os temas universais
revelam-se em cada enredo de Rosa. Na novela analisada, surgem grandes temas
como: o bem x mal; a violência; o misticismo; a conversão; a fé, a amizade, as
tentações da vida.
O narrador está em 3ª pessoa onisciente, que revela
os sentimentos mais profundos de cada personagem.
O cenário
resume-se a lugares pelos quais passam o protagonista e são identificados como
Pindaíbas, Arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do córrego do Murici,
Povoado do Tombador e arraial do Rala-Coco. A fauna e a flora mineiras são
ricamente apresentadas:
Mas,
afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu para o
terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo
do pote, marinhava céu acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um
para o outro lado, e um desperdício de verdes cá em baixo — a manhã mais bonita
que ele já pudera ver.
Estava
capinando, na beira do rego.
De
repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo
guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda
outro, mais baixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gralhantes, incapazes
de acertarem as vozes na disciplina de um coro.
Depois,
um grupo verde-azulado, mais sóbrio de gritos e em fileiras mais juntas.
— Uai!
Até as maracanãs!
E mais
maitacas. E outra vez as maracanãs fanhosas. E não se acabavam mais. Quase sem
folga: era uma revoada estrilando bem por cima da gente, e outra brotando ao
norte, como pontozinho preto, e outra — grão de verdura — se sumindo no sul.
—
Levou o diabo, que eu nunca pensei que tinha tantos! E agora os periquitos, os
periquitinhos de guinchos timpânicos, uma esquadrilha sobrevoando outra... E
mesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um casal de papagaios ciumentos.
Todos tinham muita pressa: os únicos que interromperam, por momentos, a viagem,
foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabecinhas amarelas, que não
levam nada a sério, e que choveram nos pés de mamão e fizeram recreio, aos
pares, sem sustar o alarido — rrrl-rrril! rrrl-rrril!...
Mas o
que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um bando grazinava
alto, risonho, para o que ia na frente: — Me espera!... Me espera!... — E o
grito tremia e ficava nos ares, para o outro escalão, que avançava lá atrás.
—
Virgem! Estão todas assanhadas, pensando que já tem milho nas roças... Mas,
também, como é que podia haver um de-manhã mesmo bonito, sem as maitacas?!...
O sol
ia subindo, por cima do voo verde das aves itinerantes. Do outro lado da cerca,
passou uma rapariga. Bonita! Todas as mulheres eram bonitas. Todo anjo do céu
devia de ser mulher. (Pág.
376 e 377)
Pela estrutura narrativa, pela riqueza de
sua simbologia e pelo tratamento exemplar concedido à luta entre o bem e o mal
e às angústias, que essa luta provoca em cada homem durante toda a vida, este
conto é considerado o mais importante de Sagarana.
(Profª
Luci Rocha)
Resumo
Eu sou pobre, pobre,
pobre,
vou-me embora, vou- me embora.
Eu sou rica, rica, rica
vou-me embora, daqui...
(Cantiga Antiga)
vou-me embora, vou- me embora.
Eu sou rica, rica, rica
vou-me embora, daqui...
(Cantiga Antiga)
Sapo
não pula por boniteza,
mas, porém, por percisão!
(Provérbio Capiau)
mas, porém, por percisão!
(Provérbio Capiau)
Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é
Esteves. Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves das Pindaíbas e do
Saco da Embira. Ou Nhô Augusto - O homem - nessa noitinha de novena, num leilão
de atrás de igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do
Murici.
Augusto Matraga foi criado por uma avó, que
o queria padre. No entanto, de herança de pai covarde e tio criminoso,
enveredou para o mal.
A narrativa inicia-se em meio a uma festa
religiosa, em que, num leilão, Matraga arrebata por cinquenta mil-réis uma
prostituta, desagradando um capiau rude, de testa cabeluda, que estava
interessado por ela. Matraga nem chega a usá-la, alegando que era muito feia:
“Você tem perna de Manuel Fonseca: uma fina, outra seca!”
Ele, de fato era pessoa rude, não civilizada. Além de bandido e violento,
tratava com pouco caso sua esposa, Dionóra, e sua filha, Mimita. Só queria
saber de jogo, caçada e mulheres de vida fácil.
No entanto, sua sorte mudou. Sua esposa o abandona, passando a viver, com a
filha, em companhia de um homem chamado Ovídio. Matraga não pôde vingar a
ofensa, pois recebeu a notícia, dada pelo Quim Recadeiro, de que seus capangas,
com exceção de Quim Recadeiro, também o abandonaram, passando para o lado do
Major Consilva.
Augusto vai tomar satisfações pela afronta, sem perceber que o destino virou-se
contra ele: não tem mais apoio político, está cheio de dívidas e suas terras
estão hipotecadas. Como o próprio narrador comenta, não havia se tocado de que
era momento de parar umas rodadas, deixar de jogar, pois o azar havia chegado.
Ao chegar à fazenda do Major, é cercado pelos capangas do vilão, alguns ex-subordinados
de Matraga. Então é espancado, marcado por ferro em brasa e, antes de sofrer o
pior, atira-se de um altíssimo barranco. Para seus inimigos, estava morto. Mas
é resgatado e cuidado por um casal de velhos negros: Quitéria e Serapião..
Ficou dias inconsciente. Voltou a si, e conhecendo sua situação, desejou a
morte.
Com o tempo, Matraga volta a ter paixão pela vida. Os meses que passa se
recuperando das feridas e fraturas é o tempo suficiente para se arrependa dos
pecados e abrace ao cristianismo. No seu jeito rude, fica até cômica a
convicção em afirmar que vai para o Céu, nem
que seja a porrete.
Começa sua fase de penitências. Vai com os velhinhos a uma propriedade sua
perdida e distante, o povoado do Tombador. Mostra-se trabalhador, misto de louco
e santo no olhar do povo. Vive dessa forma por quase sete anos.
Um dia, sofreu uma dura tentação. Um antigo conhecido, o Tião da Teresa, passa
por lá e surpreende-se ao descobrir Matraga, agora totalmente mudado. Traz
notícias muito inconvenientes: Dionóra estava para se casar com Ovídio, crente
de que estava viúva. Major Consilva apoderou-se das terras do protagonista.
Quim, frouxo e atrapalhado, havia sido o único a se levantar em defesa do
patrão, mas fora morto no momento em que, tomado de fúria, entrara nas terras
do Major com a intenção de vingança. Mimita, sua filha, se tornara prostituta.
É um momento cruel para Augusto. Deus o havia abandonado? Merecia mesmo o Céu?
Mas, como o bíblico Jó, resiste bravamente à tentação de buscar vingança.
E que vem o período de chuvas, que, não por coincidência, é o momento em que
Matraga acaba por sentir como se tivesse tirado um peso das costas. As águas,
opondo-se ao pó de outras épocas, simbolizam o batismo, a sublimação, a
elevação.
É então que surge o bando de Joãozinho Bem-Bem, homem da mesma estirpe do
antigo Augusto Matraga. Suas intenções provavelmente eram malévolas naquela
região, mas o amor e a dedicação com que o protagonista o recebe desarma o
cangaceiro.
O bandido intui o poder bélico de Matraga, por isso o convida a fazer parte da
empreitada. É uma forte tentação: o herói sente saudade do poder de desmando
que possuía. Imagina até a possibilidade de vingar a morte de Quim. Mas
resistiu a mais essa tentação. Estava evoluindo a passos largos.
Joãozinho Bem-Bem parte, deixando Matraga, mas levando uma afeição enorme por
ele.
Dias depois, enquanto Augusto trabalhava, presenciou uma belíssima explosão de
pássaros voando. Sua intuição lhe diz algo maravilhoso, que o faz pensar o dia
inteiro. Até que toma uma resolução: decide partir. Faz sua viagem em um
jumento, animal carregado de simbologia cristã, pois havia carregado Maria às
vésperas do nascimento de Cristo. Carregara, pois, o salvador.
Matraga viaja muitos dias, até chegar ao arraial do Rala-Coco, que estava em
polvorosa. O bando de Joãozinho Bem-Bem lá se abancara, prestes a realizar um
crime hediondo.
Um dos capangas do facínora, Juruminho, fora morto pelas costas, Joãozinho
resolve vingar-se em cima da família do assassino, pretendendo matar o filho
mais novo e entregar as irmãs moças aos seus homens. No momento em que Augusto
havia chegado, o pai do fugitivo tinha aparecido e pedido clemência pela vida
de inocentes. Joãzinho não se compadece e insiste em vingar a morte de seu
amigo Juruminho. Porém, o velho pai suplica em nome nosso Senhor Jesus Cristo e
isso comove Augusto.
É nesse instante que Augusto Esteves intercede. Mesmo havendo um enorme apreço
entre Joãozinho e o herói, os dois começam a se desentender. O bandido está
tomado de um maligno espírito vingativo. Matraga defende a bondade divina,
sempre pedindo para seu opositor evitar uma tragédia injusta, sempre clamando pelo
nome de Deus.
O inevitável acontece. Há uma terrível luta. Tiros de todos os lados. Os dois
saem feridos, mas Matraga, sempre invocando o nome do Senhor e pedindo para seu
amigo se arrepender dos pecados, acaba vencendo, rasgando a barriga de
Joãozinho, que morre segurando nas mãos suas entranhas.
Augusto Matraga estava morrendo, mas contente. Aclamado como santo e salvador
entre o povo que tenta socorrê-lo, ainda tem tempo para fazer com que
respeitassem o cadáver de Joãozinho Bem-Bem, mandando que o enterrassem
dignamente. Além disso, pede a um primo que ali está, o João Lomba, que leve a
bênção a sua filha Mimita, e diga a Dionóra que está tudo bem...
Morre, porque havia chegado a sua hora e a sua vez. Havia realizado sua missão,
cumprido os planos de um misterioso desígnio divino. Estava salvo. Ia para o
Céu.
Resumo adaptado e corrigido de:
http://www.passeiweb.com/estudos/livros/a_hora_e_vez_de_augusto_matraga_conto
Problemática e principais temas
A novela A Hora e Vez de Augusto
Matraga ocupa um lugar de destaque dentro da antologia de Sagarana,
uma vez que representa o fechamento em círculo da temática iniciada em O
Burrinho Pedrês de que um único momento pode valer por toda uma
existência. Sabemos que a força mística de Guimarães Rosa é também manifestada
na presente obra, já que, simbolicamente, o protagonista da ação é alçado à
condição de um Cristo. Nhô Augusto deixa o arraial montado num burrinho. Este é
considerado até mesmo na obra como um elemento sagrado (... porque mãe
Quitéria lhe recordou ser o jumento um animalzínho assim meio sagrado, muito
misturado às passagens da vida de Jesus), já que na Bíblia Cristo
entrou em Jerusalém montado num desses animais. A caminhada do protagonista
simboliza o homem em busca de seu destino. E qual seria o destino a ser
cumprido? Claro que a salvação de Matraga só poderia surgir a partir da justiça
divina com a negação de seu próprio ser físico em favor da justiça entre os
homens.
Ao salvar inocentes da sanha vingativa de
Joãozinho Bem-Bem, Nhô Augusto encontra também a sua redenção final, obtida com
seu trabalho, sua reza e a fé de que teria sua hora e vez. Matraga dá a vida,
como Cristo, pelos seus semelhantes (Foi Deus quem mandou esse homem no
jumento, por mór de salvar as famílias da gente!...)
A
força temática desse conto de que um momento pode valer por toda uma vida,
encontra em Nhô Augusto o momento de êxtase dentro da obra de Guimarães Rosa. A
persistência e fé do protagonista, verdadeiro herói mítico moderno, faz com que
a purificação de sua alma seja completa e sua santificação plena.
A trajetória heroica de Augusto Matraga, que
desce do espaço dos poderosos para o dos oprimidos e marginalizados,
recorda-nos o fato de que realmente parece não haver mais espaço para as
grandes epopeias clássicas, para os heróis míticos do passado, pois o homem
moderno traz em si não apenas o herói, mas também o covarde, não só o bem, mas
também o mal está, como o protagonista comprova, mais próximo do homem barroco
com suas dualidades e ambiguidades do que do clássico. As verdadeiras epopeias
modernas, como podemos considerar em A hora e vez de Augusto Matraga,
são protagonizadas por homens comuns que se entregam à derrota ou lutam
arduamente através de seus corpos e de suas almas, esperando que surja a sua
hora e vez.
Personagens
Augusto
Esteves Matraga - é o protagonista da obra. Muda de nome de acordo com as
passagens significativas de sua vida, o que nos permite enxergar nele uma
projeção dos heróis míticos. Matraga transforma-se num homem bom e abnegado,
trabalhador e rezador, depois de ter sido mau, mulherengo e violento. Seu
comportamento desregrado levou-o a perder a fortuna, a mulher e a filha, tendo
quase perdido a vida. Depois de uma surra aplicada pelos capangas do Major
Consilva, Matraga sentiu-se renascer como outro homem. Foi obrigado a
esconder-se dos inimigos ao pé de um morro, com um casal de pretos velhos que o
salvou. Terminou sua trajetória matando o famoso chefe de jagunços Joãozinho
Bem-Bem para salvar uma família inocente. Na batalha, também perdeu a vida, mas
foi em paz.
Quitéria e Serapião: Casal de velhos,
isolados e religiosos, que cuidaram da recuperação de Nhô Augusto e colaboraram
com sua redenção.
Angélica e Tomázia
(Sariema):
prostitutas do córrego do Murici. Sariema foi arrematada em leilão por Nhô
Matraga.
Quim Recadeiro: Homem de confiança
de Nhô Augusto. Covarde, mas leal. Depois do sumiço de Augusto, enfrenta o
Major Consilva e é morto com mais de vinte balas.
Major Consilva
- Era
inimigo de Nhô Augusto, tendo também sido inimigo do pai do protagonista. Homem
mau e rico, toma posse das propriedades de Nhô Augusto, depois da suposta morte
deste.
Dona
Dionóra: Era
mulher de Nhô Augusto. Acabou não aguentando mais o desprezo do marido e fugiu
com Ovídio Moura.
Ovídio Moura: Rico fazendeiro,
que amava Dionóra e tirou-a do marido, fazendo-a feliz.
Mimita: É filha de Nhô
Augusto. Percebe, ainda menina, que o pai não gosta dela e da mãe. Acaba se
tornando prostituta, depois de ser levada do lugar por um mascate. Nessa
ocasião, tinha 17 anos.
Joãozinho
Bem-Bem - Famoso
chefe de jagunços. Homem temido e destemido no sertão. Faz justiça com as
próprias mãos ou armas, defendendo seus aliados e eliminando seus inimigos.
Pressente em Nhô Augusto uma força oculta que os aproxima. Representa a
tentação que surge para destruir os projetos de redenção do protagonista, mas
por outro lado, também colabora com esse projeto quando mata Augusto.
Tião
da Thereza - Conterrâneo
de Nhô Augusto. Encontra-o no povoado do Tombador e coloca-o a par dos
acontecimentos posteriores à sua suposta morte.
João Lomba: primo distante de
Augusto Esteve, que o encontra na hora de sua morte, no arraial do Rala-Coco.
Juruminho, Flosino
Capeta, Tim Tatu-tá-te-vendo, Zeferino, Epifânio, Teófilo Sussuarana, Cangussu: capangas de
Joãzinho Bem-Bem. (Luci Rocha)