NEGRINHA,
Monteiro Lobato (1920)
1) Estrutura: Conto
3)
Período Literário: Pré-Modernismo
2)
Contexto histórico: Embora distante três décadas da proclamação da República e da
extinção da escravidão, o Brasil ainda vivia efeitos da transição da Monarquia
para a República e do trabalho escravo para o trabalho livre.
O país, que até
então tinha sua estrutura social baseada no meio rural e a estrutura econômica
dependente da mão de obra escrava, passava por inúmeras transformações. A
indústria começava a se desenvolver e o processo de urbanização avançava. O
Brasil modernizava-se, mas o preconceito racial contra aqueles que tinham a
pele negra ou parda, antigos escravos e seus descendentes, permanecia o mesmo.
4)
Cenário: uma fazenda cuja proprietária chama-se D. Inácia.
5)
Narrador: 3ª pessoa onisciente.
6)
Linguagem: fluente, moderna, vocabulário
regional.
7) Temas: a mentalidade escravocrata que persistia tempos depois da
abolição; violência contra a criança; hipocrisia religiosa das elites rurais.
8)
Recursos Literários: A ironia apresenta-se como figura de linguagem mais
evidente.
9) Personagens: D.
Inácia, Negrinha, a criada, duas sobrinhas de D. Inácia.
OPRESSÃO
E PRECONCEITO
Prof. Sergio Manoel Rodrigues
A partir do título dessa obra de
Monteiro Lobato, nota-se, pela utilização do sufixo –inha, o tratamento
pejorativo dado à personagem principal no decorrer do conto, apresentada como
“[…] uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de
cabelos ruços e olhos assustados”. (LOBATO, 2000, p. 09). Características estas
que não revelam apenas as características físicas da menina, mas também sua
condição social e seu constante estado psicológico.
Negrinha é vítima de um meio social
injusto e preconceituoso, cujos padrões se valem da submissão dos mais fracos e
da hipocrisia. Dona Inácia, a dona da fazenda, representa isso, pois enquanto
agride a menina, caracteriza-se por seu status e suas falsas virtudes:
“Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres,
com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu […] Mas não
admitia choro de criança”. (LOBATO, 2000, p. 09).
Observando
a caracterização física e psicológica dessas duas personagens, pode-se chegar à
seguinte oposição:
D.
Inácia = adulta, rica, branca, opressora, gorda, “dona do mundo”, “virtuosa”
X
Negrinha = criança, pobre, negra, oprimida, magra, “atrofiada”, “peste”
Negrinha = criança, pobre, negra, oprimida, magra, “atrofiada”, “peste”
Quadro:
posição social das personagens.
Com base no quadro acima e
considerando os estudos acerca das narrativas literárias, os seres ficcionais
do conto podem ser vistos como personagens-estado, já que nestas “[…] os dados
atributivos e designativos passam a ser invocados na constituição do ser
ficcional, privilegiando-se estes […] supõem[-se] a presença de um enunciador
que os manipula […]”. (SEGOLIN, 1999, p. 61). Essa narração propõe tal
concepção de personagem, baseando-se em caracteres físicos e psicológicos, na
qual ambas são tratadas de formas bastante diferentes: a começar por suas
denominações, enquanto uma possui nome e até forma respeitosa de tratamento (D.
Inácia), a outra atende apenas por uma alcunha (Negrinha); uma usa da razão e é
bem vista pela sociedade, já a outra é inocente e humilhada por todos.
No entanto, as duas personagens
pertencem a um mesmo contexto sócio-histórico do Brasil: “Lobato situa a
história de Negrinha em um tempo em que a escravidão havia sido abolida por lei
– mas leis não têm força para abolir costumes culturais […]”. (BIGNOTTO, 2006,
[s.p.]). Desse modo, percebe-se que D. Inácia não se adequou à abolição da
escravatura e Negrinha continuava escrava. Por isso, a menina guarda as marcas
da hostilidade, que chegam ao ápice da violência, seja pelas agressões físicas,
pelo desafeto ou pelos castigos que recebe dos habitantes da casa-grande:
Batiam-lhe
sempre, por ação ou omissão […] Pestinha, diabo, coruja, barata descascada,
bruxa, pata choca, pinto gorado, mosca morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha,
coisa ruim, lixo – não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam
[…] O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele
os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. (LOBATO, 2000,
p. 10-11).
A não-identidade da menina demonstra
que ela não é considerada um ser humano pelos demais, mas sim um objeto,
sobretudo um animal que não possui alma e precisa ser domesticado. Ela não pode
andar pela casa, brincar e, nem mesmo, falar, segundo Lobato (2000, p. 10),
“[…] feito um gato sem dono, levada a
pontapés […] que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas […]”,
pois seria castigada pela realização de um de seus atos, quando, por exemplo, é
forçada a engolir um ovo fervendo como forma de castigo por uma de suas
travessuras: “Negrinha abriu a boca como
o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água
‘pulando’ o ovo e zás! na boca da pequena […]”. (LOBATO, 2000, p. 14).
Nesse sentido, deve-se dizer que,
inicialmente, Negrinha pode ser considerada uma personagem monológica (BAKHTIN
apud BEZERRA, 2005), devido às suas características individuais, pela aceitação
de sua situação miserável e por não ir contra a realidade em que vive, o que
equivale à não-ativação de pontos de vista questionadores. Logo, essa primeira
etapa da personagem mostra toda sua passividade diante das crueldades do
preconceito e das desigualdades sociais.
Entretanto, há no texto uma
reviravolta dessa personagem. Negrinha, até então a única criança da casa,
passa a conviver com duas sobrinhas de Dona Inácia. As duas garotinhas
representam o mundo burguês, já que são descritas como louras, ricas e
possuidoras de brinquedos caros. Elas, em alguns aspectos, assemelham-se à
Negrinha, pois são crianças apresentadas apenas por seus atributos físicos.
Todavia, as sobrinhas comportam-se conforme as normas de uma época e de uma
classe social: “Riram-se as fidalgas de
tanta ingenuidade. – Como é boba! disseram. E você como se chama? – Negrinha.
As meninas novamente torceram-se de riso […]”. (LOBATO, 2000, p. 17). É
nesse deboche inocente que se percebe a incorporação de um julgamento social,
peculiaridade esta que Negrinha não possuía até então. Quando Negrinha se
depara com as duas brincando na sala, entra em contato com outro universo e
adquire uma consciência individual:
[…] Negrinha viu-as
irromperem pela casa como dois anjos do céu – alegres, pulando e rindo […] Quê?
Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado – e findo o seu inferno – e
aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a
festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.Mas a dura lição da
desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos o
som cruel de todos os dias: ‘Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga?’
[…] Brincar! Como seria bom brincar! – refletiu com suas lágrimas, no canto, a
dolorosa martirzinha […]. (LOBATO, 2000, p. 15).
A pobre órfã entra em outro estágio,
devido ao conflito consciente em relação a si e ao mundo, ou seja, é a tomada
de consciência por ela mesma. Desta forma, transforma-se em uma personagem
dialógica (BAKHTIN apud BEZERRA, 2005), cuja voz interior faz questionamentos e
reflexões acerca de sua condição como ser humano. Imediatamente, a menina passa
a externar seus pensamentos: “Era de
êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome
desse brinquedo […] – É feita?… perguntou extasiada”. (LOBATO, 2000, p.
16-17). Nesse trecho, em que o autor coloca voz na boca de Negrinha pela
primeira vez no conto, ela assume a consciência de toda criança e sente-se
gente: “Varia a pele, a condição, mas a
alma da criança é a mesma – na princesinha e na mendiga […] Negrinha, coisa
humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma”. (LOBATO, 2000, p.
19). Portanto, a boneca é para Negrinha a representação da igualdade, da
liberdade e da humanidade, por isso, quando as sobrinhas vão embora e levam
consigo a boneca, a menina morre triste e solitária ao se encontrar da mesma
forma lastimável como vivia antes.
De acordo com a classificação de
Forster (apud JUNIOR, 1995), Negrinha é uma personagem redonda (esférica) –
característica esta que se atribui aos seres ficcionais que sofrem uma
alteração de caráter durante a narrativa –, devido à sua conscientização, visto
que essa personagem lobatiana, por meio da complexidade de suas características
psicológicas que se concretizam no enredo do conto, humaniza-se dentro da trama
como representante de três grupos sociais brasileiros: o escravo, a mulher e a
criança, cujas trajetórias na História não foram bem sucedidas. Portanto, como
afirma Bignotto (2006, [s.p.]), “[…] Negrinha […] não tem nome porque é uma
multidão” e, dessa forma, nota-se a representação da realidade e do pensamento
do homem de uma época.
Quanto ao narrador de Negrinha, este
se apresenta como extradiegético, que, conforme Segolin (1999), tal
classificação designa um narrador que conta uma história que não é a sua, e, no
caso desse conto, o discurso irônico presente no foco narrativo é recorrente,
exemplificando: “A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de
crianças. Vinha da escravidão, fôra senhora de escravos […]”. (LOBATO, 2000, p.
12). Nesse sentido, percebe-se que esse tratamento dado ao narrador serve como
uma forma de denunciar os problemas sociais presentes no contexto em que as
personagens estão inseridas. Contudo, a discursividade desse foco narrativo
mostra-se polifônica, haja vista que as vozes narrativas envolvem-se em uma
interação:
Uma criada abriu-se e tirou os brinquedos. Que maravilha!
Um cavalo de pau!… Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim
tão galante. Um cavalinho! E mais… Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos
amarelos… que falava ‘mamã’… que dormia […]. (LOBATO, 2000, p.
16).
A polifonia desse conto, como ocorre
na citação acima em que a voz do narrador funde-se às reflexões de Negrinha,
equivale ao enfoque das manifestações do mundo interior das personagens ou,
segundo BEZERRA (2005, p. 193), “[…] à libertação do indivíduo, que de escravo
mudo da consciência do autor se torna sujeito de sua própria consciência […]”.
Assim, nesse conto de Monteiro Lobato, a protagonista se antropomorfiza por
completo ao assumir um fluxo de consciência próprio, tornando-se plural perante
um mundo transformado pelas mudanças sociais e ideológicas.
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