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domingo, 14 de abril de 2013

VIAGENS NA MINHA TERRA, (Almeida Garrett)


RESUMO E ANÁLISE


(A prof.ª Luci Rocha oferece palestras especiais sobre as obras dos vestibulares, a partir deste segundo semestre. Entre em contato pelo e-mail curso_palavra@terra.com.br e agende uma aula. Dez alunos é o número mínimo).

ESTRUTURA
       Período Literário: Romantismo português
       Narrador: narrador-autor (o próprio Almeida Garrett durante sua viagem), e 3ª pessoa onisciente (romance de ficção)
       Linguagem: fluente, elevada, elegante, selecionada, com tom irônico e moderno.
       Tempo/espaço: Escrita em 1843 e publicada em 1846, resgata um passado referente à guerra civil portuguesa, que aconteceu entre 1832 e 1834, em Portugal.
       Classificação: misto de relato de viagem, história e ficção romântica.

RECURSOS LITERÁRIOS
       Digressões: efeito de romper a continuidade de um discurso com uma mudança de tema intencionada.
       Intertextualidade: citações de outros autores e obras dentro de seu texto;
       Metalinguagem: referências sobre a própria obra, “o fazer literário”;
       Leitor incluso: diálogo constante com o leitor.

Essa obra apresenta alguns aspectos importantes: A guerra civil portuguesa (1832/1834), o papel do autor enquanto um cidadão engajado na sociedade de seu tempo, uma viagem realizada pelo autor ao Vale de Santarém (1843), várias viagens digressivas durante o percurso real; um romance de ficção em 3ª pessoa envolvendo Carlos e Joaninha (1832);  uma carta de Carlos a Joaninha, que explica e aprofunda a natureza volúvel e contraditória desse rapaz.

A guerra civil portuguesa
No ano de 1820 eclodiu a Revolução Liberal do Porto. Depois de algumas vitórias militares, os liberais fizeram uma série de exigências: o imediato retorno do rei, o juramento do soberano sobre as bases da futura Constituição , ainda, o retorno do Brasil à condição de colônia. Mas o grande país americano decidiu seguir seus próprios caminhos, desligando-se da antiga metrópole: em 7 de setembro de 1822, o Brasil declarou a sua independência. Apesar desse duro golpe, os liberais lusitanos assinaram a Constituição de 1822, conhecida como Constituição Vintista – texto de forte caráter liberal que acabava com diversos privilégios de origem feudal e contrariava firmemente os interesses das ordens eclesiásticas instaladas no país. Entretanto, os absolutistas não se deram por vencidos. Buscaram apoio junto á rainha Carlota Joaquina e ao filho dela, D. Miguel, empreendendo uma luta para restaurar o seu poder.
Em 1823, D. Miguel e os absolutistas pegaram em armas em Vila Franca de Xira, fizeram uma contrarrevolta e tomaram novamente o poder, no episódio conhecido como “Vilafrancada”. D. João VI, por sua vez, contrariando os ímpetos absolutistas da esposa e do filho, prometeu uma Constituição menos radicalmente liberal, estabelecendo o que seria um “absolutismo moderado”.
Em 1826, morre D. João VI, deixando como herdeiro natural, seu filho D. Pedro, Imperador do Brasil. Porém, visando uma política de conciliação, Pedro abdicou da coroa portuguesa em nome de sua filha Maria da Glória – então com apenas sete anos de idade – com a condição de ela se casar com seu tio D. Miguel. Já nomeado D. Pedro IV de Portugal, ele revogou a Constituição de 1822 e outorgou a Carta Constitucional de 1826, de caráter bem menos radical que o da constituição vintista, um verdadeiro meio termo entre os liberais e os absolutistas. D. Miguel aceitou o que o irmão impusera e no final de 1827 realizou os esponsais – espécie de contrato com promessa de casamento – com a sobrinha.  Não contente de estar no poder, D. Miguel quer ser o monarca de Portugal. Apoiado por suas facções, é finalmente aclamado rei em maio de 1828, e promove intensa perseguição a seus inimigos políticos, os democratas, os constitucionalistas, os liberais, enfim todos os que representavam influência de ideologia francesa ou inglesa. Mas a resistência contra D. Miguel vai crescendo, a partir de seu próprio irmão, que, já em 1832, vai à ilha Terceira (Açores) reunir-se aos revoltosos. Iniciou-se então uma guerra civil que durou quatro anos e que só terminaria com as batalhas de Almoster (fevereiro de 1834) e Asseiceira (maio de 1834). Vencem, finalmente, os constitucionalistas, e Garrett, fazendo parte desse grupo dos liberais, terá importantes tarefas de reconstrução cultural e moral de seu país.

Almeida Garrett na sociedade de seu tempo

Escritor e político português. Nasceu no Porto, onde passou a infância até 1804, ano em que a família se mudou para a Quinta do Castelo, na margem sul do Douro, sob a vigilância e cuidados de duas criadas (Brígida e Rosa de Lima). Estas duas figuras terão despertado nele o gosto pela cultura popular, que se refletiu, mais tarde, na recolha de textos populares do Romanceiro ou na criação de personagens que ilustram a mentalidade e sabedoria populares, como por exemplo o Telmo, de Frei Luís de Sousa. As invasões francesas, na primeira década do século XIX (1809), obrigaram a família, pertencente à burguesia próspera e letrada, a refugiar-se na sua propriedade da ilha Terceira (Açores). Ingressou, em 1816, na Faculdade de Direito de Coimbra, depois de ter recebido a influência eclesiástica do tio e educador. Aderiu aos ideais do liberalismo que então ganharam terreno, apoiando, em 1820, a Revolução Liberal.

Datam já desse período as suas primeiras publicações. Terminado o curso em 1821, ocupou alguns cargos públicos, mas, em 1823, o golpe da Vila-Francada levou-o, juntamente com a mulher, Luísa Midosi, com quem casara em 1822, a procurar refúgio em Inglaterra, e depois em França. O contato com a cultura e a literatura inglesas determinaram a sua atividade literária posterior. Os seus poemas «Camões» (1825) e «D. Branca» (1826), considerados como os marcos introdutórios do Romantismo em Portugal, datam deste período. 
Regressou a Portugal em 1826, destacando-se então pela sua atividade jornalística. A restauração do absolutismo, em 1828, fê-lo regressar a Inglaterra, de onde voltaria, em 1832, para tomar parte no desembarque do Mindelo. Restaurado o constitucionalismo, foi cônsul e responsável pelos negócios de Portugal na Bélgica (1834-36). Em 1836, de regresso a Portugal, divorciou-se de Luísa Midosi. Passos Manuel, então na chefia do governo, convidou-o a elaborar um plano de criação de um teatro nacional, que Garrett concretizou com a criação do Teatro Nacional (D. Maria II), do Conservatório de Arte Dramática e com o desenvolvimento de um repertório dramático, de que o próprio escritor se encarregou. Em 1841 nasceu a sua filha, Maria Adelaide, fruto da sua ligação com Maria Adelaide Pastor, que morreu nesse mesmo ano, deixando Garrett a braços com a situação de ilegitimidade da filha, que muito o preocupou e se refletiu até, ao que se crê, em obras suas, nomeadamente na criação da figura de Maria, de Frei Luís de Sousa. 
 A sua carreira na política e na vida pública nacional foi interrompida pela subida ao poder de Costa Cabral, que o demitiu do cargo de Inspetor-Geral dos Teatros e proibiu a representação da peça Frei Luís de Sousa, por ver, nesta, alusões críticas à situação política então vivida no país. Em 1851, ano em que se tornou par do reino, fundou o jornal A Regeneração. Ministro dos negócios estrangeiros em 1852, foi-lhe atribuído, dois anos mais tarde, por D. Pedro V, o título de visconde. Afasta-se da vida pública e falece no ano de 1854, em decorrência de um câncer.
Em vida, Almeida Garrett desdobrou-se em múltiplas atividades: orador parlamentar (ficaram célebres alguns dos seus discursos), ensaísta literário, folclorista, político, jornalista e jurista. A sua personalidade exuberante ficou marcada na história política e cultural do país.
Como escritor, a sua formação foi basicamente arcádica, evoluindo para moldes românticos a partir da sua estadia em Inglaterra. O ideal de intervenção cívica refletiu-se na sua criação literária, particularmente através dos dramas históricos (O Alfageme de Santarém, 1842, entre outros) e dos poemas da fase arcádica. Este ideal está também patente nas Viagens na Minha Terra (1846), obra fundamental da prosa novelística portuguesa. Aqui se confrontam, no contexto histórico português da época, o liberalismo e o conservadorismo políticos e, no contexto literário, os valores clássicos e românticos, regionalistas, nacionalistas e universalistas. Esta obra, de intuito pedagógico evidente, denuncia, numa viagem simultaneamente no tempo (ao passado, de que se recuperam acontecimentos exemplares de espírito nacionalista e se contestam outros) e no espaço nacional, uma atitude crítica relativamente ao presente. Os preceitos românticos de aproximação à realidade e de espontaneidade do discurso, o característico hibridismo de gêneros, tons e registros de língua, a denúncia do convencionalismo de escolas, sejam elas clássicas ou românticas, a afirmação de individualismo e inteira liberdade do autor face a essas mesmas escolas, são alguns dos aspectos mais marcantes desta obra, incontornável no estudo da modernização da prosa portuguesa. 
Defendendo que o contacto com as fontes nacionais populares era essencial à vitalidade da literatura, Almeida Garrett levou a cabo uma regeneração da língua, conferindo-lhe uma naturalidade de que esta carecia e aproximando-a da oralidade.

A viagem de Garrett a Santarém, em 1843, e alguns aspectos das digressões do autor
A princípio, a obra refere-se a um passeio verídico feito pelo autor, a convite de seu amigo, Passos Manuel, ao Vale de Santarém, na província do Ribatejo, em 17 de julho, de 1843.
O autor decide registrar suas impressões durante o percurso de Lisboa a Santarém (Lisboa, Alhandra, Vila Franca de Xira, Azambuja, Cartaxo, Vale de Santarém e Santarém), numa distância de 87 quilômetros que, naquela época, realizado um pouco a barco, outro em carruagem  e terminado ao lombo de uma mula, tornava-se bastante árduo e trabalhoso.
Além dessa viagem física que possibilitará ao autor fazer várias considerações geográficas sobre aquela região visitada, as “viagens” referem-se, principalmente, às reflexões sentimentais, literárias, filosóficas, políticas, econômicas, sociais, morais e cotidianas que ele realiza durante o percurso.

Inicia cada capítulo com uma pequeno resumo do que será tratado: “De como o autor deste erudito livro se resolveu a viajar na sua terra, depois de ter viajado no seu quarto; e como resolveu imortalizar-se escrevendo estas suas viagens. Parte para Santarém. Chega ao terreiro do Paço, embarca no vapor de Vila Nova; e o que aí lhe sucede. A Dedução Cronológica e a Baixa de Lisboa. Lorde Byron e um bom charuto. Travam-se de razões os ilhavos e os Bordas-d'Água: os da calça larga levam a melhor.”

Elogiando o clima e a natureza de seu país, considera que não bastava a ele viajar apenas pelo quarto, como o fez o escritor francês Xavier de Maistre, em sua obra “Viagens à volta de meu quarto”; porém afirma que sua proposta apresenta-se mais ousada.
Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.”
“Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crônica.” 
“São 17 deste mês de Julho, ano de graça de 1843”
Almeida relata que no dia determinado, chega bem cedo ao lugar de onde partiria com mais alguns amigos.
Embarcam e vão apreciando de um lado o Rio Tejo; do outro, a natureza, palácios e mosteiros que o narrador concorda que são lugares belos, tanto quanto Belém.
Passam por Alhandra, uma freguesia no Concelho de Vila Franca de Xira. Nesse ponto, Almeida faz uma pequena crítica ao regime da Restauração, porém ameniza, afirmando que não tem nada contra essa vila ou contra quem lá fez a monarquia.
Convida os leitores a acender seus charutos e cita Lord Byron, que, segundo o que o narrador pôde saber, nunca teria fumado a bordo.
Encontram um camponês fumando; pensa em pedir-lhe fogo, porém um outro ofereceu-lhe. A partir daí, Almeida narra uma disputa entre dois grupos: de um lado, o do campeiro, considerava-se mais forte por segurar um touro à unha; do outro, os ilhavos, achavam-se mais valentes por brigar com o mar, oito ou dez dias a fio, numa tormenta. Queriam saber qual deles era mais forte. Os do mar acabaram convencendo, e o público aplaudiu o ílhavo e os campinos ficaram de cabeça baixa.

O narrador explica que suas viagens hão de ser “uma obra prima, erudita, brilhante, de pensamentos novos”; não uma brincadeira.
Lembra-se de um filósofo que teria escrito uma obra sobre a marcha da civilização, do intelecto, cujos princípios estariam pautados em dois princípios básicos: o espiritualista, personificado em D. Quixote; e os materialista, cuja figura central seria Sancho Pança, personagens da obra de Miguel de Cervantes.
Garrett afirma que em a sua viagem Tejo acima está “simbolizada a marcha do progresso”. Chegam, ele e seus amigos, à Vila Nova da Rainha, um lugar muito feio, segundo ele.
Explica que, a partir dali, hão de seguir viagem em montaria. Observa as mulas nas quais irão e brinca dizendo que elas parecem mais elegantes do que carruagens francesas.
Dali, seguem até Azambuja, na carruagem de um amigo. Enquanto isso vai tecendo críticas em relação às estradas de Portugal. Considera que os ministros responsáveis por elas deveriam ser obrigados a utilizá-las, viajando pelo menos duas vezes por ano.
Enfim, chegam e param em uma pousada: misto de hotel e café. Assusta-se com uma feia mulher à porta, a quem ele chama de bruxa, caindo-lhe a caneta da mão.  “Cai-me a pena da mão!”

Utilizando-se dos recursos de metalinguagem e de leitor incluso, Almeida Garret (autor-narrador) continua seu processo narrativo:
“Vou desapontar decerto o leitor benévolo; vou perder, pela minha fatal sinceridade, quanto em seu conceito tinha adquirido nos dois primeiros capítulos desta interessante viagem”.
Continua a narrativa ironizando o estilo romântico (“século das fortes sensações”). Voltando ao assunto da estalagem que encontra, pergunta o que seria ela, num tempo em que um autor como Vitor Hugo; a obra Os mistérios de Paris, de Gautier; e Fausto, de Goethe andam nas mãos e na cabeça de todos?
Apresenta uma paródia dos versos do poeta latino Alceu referindo-se a dois atenienses que teriam assassinado um tirano. Em seguida, sugere que se plantem batatas e que se pavimentem estradas, que se compre, que se venda, que se agiote; e então, pergunta “aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?
Conclui esse raciocínio, fazendo uma crítica à ciência do seu século.
Depois de tentar, de forma insistentemente erudita,  definir a estalagem como clássica ou romântica, parte o narrador para explicar sobre a figura da velha a quem ele chamou de bruxa, já que ela se encontrava suja e maltrapilha à porta daquela asquerosa casa.
Junto da velha, estaria uma moça, tão nojenta quanto à primeira, e um velho meio paralítico que bebia. Tomaram uma limonada e partiram em direção “ao famoso pinhal da Azambuja”.

O autor inicia o capítulo III fazendo uma apologia à modéstia que, para ele, tem mais valor do que a inocência. Para isso, confronta um filósofo grego, Démades, com um inglês, Addison. O primeiro teria sido a favor da inocência: “Da beleza e virtude é a cidadela/ da inocência primeiro – e depois ela”; o outro, como o narrador, defendia a modéstia. Segue o narrador elogiando as mulheres modestas e condenando as maliciosas. Em meio a essas reflexões, chega ao famoso “Pinhal de Azambuja”.
Reconhece que é um homem dado a sonhar acordado e sujeito a distrações, quase um sonâmbulo. Aconselha, por fim, que o leitor salte a página, e siga ao próximo capítulo.
Espanta-se o narrador com a paisagem a qual chamavam “Pinhal de Azambuja”. Depois de tanto ouvir falar desse local, de ter fantasiado tantas personagens fazendo parte dele, constata que não passa de “uns poucos pinheiros rasos e enfezados”. Segue o capítulo, decepcionado com o cenário e, em um ataque de despeito, revela como a literatura romântica tem sido elaborada:
Sim, leitor benévolo, e por esta ocasião te vou explicar como nós hoje em dia fazemos a nossa literatura. Já me não importa guardar segredo, depois desta desgraça não me importa já nada. Saberás pois, ó leitor, como nós outros fazemos o que te fazemos ler.
Trata-se de um romance, de um drama — cuidas que vamos estudar a história, a natureza, os monumentos, as pinturas, os sepulcros, os edifícios, as memórias da época? Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos. Desenhar caracteres e situações do vivo da natureza, colori-los das cores verdadeiras da história... isso é trabalho difícil, longo, delicado, exige um estudo, um talento, e sobretudo tacto!... Não senhor: a coisa faz-se muito mais facilmente. Eu lhe explico.
Todo o drama e todo o romance precisa de:
Uma ou duas damas, mais ou menos ingênuas.
Um pai — nobre ou ignóbil.
Dois ou três filhos, de dezenove a trinta anos.
Um criado velho.
Um monstro, encarregado de fazer as maldades.
Vários tratantes, e algumas pessoas capazes para intermédios e centros.
Ora bem; vai-se aos figurinos franceses de Dumas, de Eug. Sue, de Vítor Hugo, e recorta a gente, de cada um deles, as figuras que precisa, gruda-as sobre uma folha de papel da cor da moda, verde, pardo, azul — como fazem as raparigas inglesas aos seus álbuns e scrapbooks; forma com elas os grupos e situações que lhe parece; não importa que sejam mais ou menos disparatados. Depois vai-se às crônicas, tiram-se uns poucos de nomes e de palavrões velhos; com os nomes crismam-se os figurões, com os palavrões iluminam-se... (estilo de pintor pinta-monos). — E aqui está como nós fazemos a nossa literatura original.

Depois dessas revelações, Garrett declara que tiveram que seguir o resto da viagem até Santarém em uma mulinha asneira, pois a carruagem que lhes servia de condução havia se quebrado. Monta na mula e percebe que ela tem um “confortável e ameníssimo chouto” (trote). Aproveita para rememorar um amigo, o marquês D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho, um português que o autor teria conhecido em Paris. Esse marquês tinha a mania de trotar. Trocava as caríssimas e confortáveis carruagens inglesas, por um duro cabriolé de praça, apenas para sentir o trote do animal. Enfim, ele termina o capítulo convidando: “Piquemos para o Cartaxo que são horas”.
Inicia um novo capítulo (VI) com uma consideração a respeito do embate entre o Cristianismo e o Paganismo (“Teologia x Mitologia”) na obra os Lusíadas, de Camões. O autor chega a concordar que aquilo era uma “sensaboria”, mas devido ao seu pendor nacionalista, toma o partido do grande poeta renascentista, que ao menos tinha fé na pátria. Anima-se a querer falar com Marquês de Pombal, que se encontrava já no reino das sombras e, divagando, imagina-se diante dele a perguntar-lhe por que ele teria mandado arrancar as vinhas do Ribatejo:
— “Para que mandou V. Ex.a arrancar as vinhas do Ribatejo?”
Apertou a luneta no sobrolho e sorriu-se.
— “Elas aí estão centuplicadas, que até já invadiram o pinhal de Azambuja. Fez V. Ex.a um despotismo inútil, e agora...”
— “Agora quem bebe por lá todo esse vinho?
Depois desse devaneio, o narrador acorda e vê que chegou ao Cartaxo.

Os viajantes apeam de suas mulas chouteiras e entram em um café. Garrett inicia então uma série de considerações irônicas a respeito do lugar. Afirma que o mais elegante café de Paris ou o mais agradável dos passeios feitos em carruagens inglesas não seriam capazes de conferir-lhe o prazer que experimentou ao descer daquela mula e sentar-se em um banco rústico daquele lugar simples no Cartaxo. Provoca o leitor português, dizendo que se ele viajasse mais, poderia saber a diferença entre um café e outro. Acrescenta que qualquer pessoa mais culta e viajada poderia conhecer rapidamente a cultura de um país, depois de estar em um café do lugar. Afirma ainda que ele seria bem capaz disso.
Estabelece uma conversa com o dono do estabelecimento, depois saem para observar o lugar. Mostra-se simpatizado com o que vê. Cartaxo não tem história antiga, mas a tem moderna e importantíssima, segundo ele.

Entre Cartaxo e Santarém há uma charneca (terreno arenoso com arbustos esparsos e sem plantações. Esse ambiente selvagem acende o amor do poeta pelo país. No meio daqueles espaços amplos, o seu sentir ultrapassa o seu pensar; e ele mostra-se enfim, plenamente romântico. Porém, um dos colegas de viagem nota que naquele lugar aconteceu, durante a Guerra Civil, a “última revista do imperador”, o que o faz pensar na Guerra e no quanto de sangue teria sido derramado por conta dela.
Melancólico, chegam à Ponte da Asseca (uma ponte de 104m que liga Cartaxo a Santarém). Lembra que desde pequena fora liberal: ainda criança, ao invés de comprar numa feira pequenas bugigangas, preferiu comprar um retrato de Napoleão Bonaparte.
“Quem me diria quando, por esse primeiro pecado político da minha infância, por esse primeiro tratamento duro, e — perdoe-me a respeitada memória de meu santo pai! — injustíssimo, que me trouxe o mero instinto das ideias liberais, quem me diria que eu havia de ser perseguido por elas toda a vida! que apenas saído da puberdade havia de ir a essa mesma França, à pátria desses homens e dessas ideias com que a minha natureza simpatizava sem saber porquê, buscar asilo e guarida?
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Benévolo e paciente leitor, o que eu tenho decerto ainda é consciência, um resto de consciência: acabemos com estas digressões* e perenais divagações minhas. Bem vejo que te deixei parado à minha espera no meio da ponte da Asseca. Perdoa-me por quem és, demos de espora às mulinhas, e vamos que são horas!”
Nesse ponto, inicia a descrição do Vale de Santarém e a história de amor entre Carlos e Joaninha, narrada por um dos amigos do autor.
Depois de ouvir a história quase inteira, chega a Santarém. A primeira impressão prometia grandes decepções: “tudo indicava as vizinhanças de uma povoação descaída e desamparada, concluindo que aquelas construções eram símbolos da degeneração arquitetônica de seu país.
Já era noite quando o autor vai procurar a fortaleza onde morava seu amigo Passos Manuel (líder da revolução setembrista). Relata a dificuldade que teve para encontrar a moradia de seu anfitrião, pois se achou diante de uma cidade arrasada, cheia de entulhos e pardieiros. Constata que o portugueses, impensadamente, estavam destruindo seu patrimônio, com tantas reformas em construções históricas valiosas (“Nos reparos e reconstruções dos templos antigos é que este péssimo estilo, esta ausência de todo estilo, de toda a arte mais ofende e escandaliza”). Seu amigo morava em um lugar onde fora, nada mais nada menos, o Palácio do primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques de Borgonha. Contudo, nenhum sinal dessa grandeza histórica era perceptível. No outro dia, mais descansado, Garrett depara-se com um cenário deslumbrante:

“Nunca dormi tão regalado sono em minha vida. Acordei no outro dia ao repicar incessante e apressurado dos sinos da Alcáçova. Saltei da cama, fui à janela, e dei com o mais belo, o mais grandioso, e, ao mesmo tempo, mais ameno quadro em que ainda pus os meus olhos.
No fundo de um largo vale aprazível e sereno, está o sossegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre de água junto às margens, donde se debruçam verdes e frescos ainda os salgueiros que as ornam e defendem. Dalém do rio, com os pés no pingue nateiro daquelas terras aluviais, os ricos olivedos de Alpiarça e Almeirim; depois a vila de D. Manuel e a sua charneca e as suas vinhas. Daquém a imensa planície dita do Rossio, semeada de casas, de aldeias, de hortas, de grupos de árvores silvestres, de pomares. Mais para a raiz do monte em cujo cimo estou, o pitoresco bairro da Ribeira com as suas casas e as suas igrejas, tão graciosas vistas daqui, a sua cruz de Santa Iria e as memórias romanescas do seu alfageme.”

Aproveita para contar uma história do folclore popular de Portugal sobre a origem do nome de Santarém: uma virgem, de nome Iria (Irene) teria sido violentada e degolada por um romeiro, que ficara hospedado na casa de sua família.
Depois de muitas decepções, e indignado com tanta depredação histórica e cultural, o autor resolve regressar a Lisboa. Antes, passa pelo Vale de Santarém e encontra-se com dois personagens do romance que ouvira: Frei Dinis e D. Francisca. Trava uma conversa com Frei Dinis e fica sabendo o que teria acontecido com os outros.

Um romance de ficção
Em meio a essas digressões* (efeito de romper a continuidade de um discurso com uma mudança de tema intencionada ou uma reflexão baseada em um flashback), surge uma história romântica envolvendo as personagens alegóricas: Carlos, sua prima Joaninha (“a menina dos rouxinóis”), Irmã Francisca, Frei Dinis e Georgina, todos representando, metaforicamente, uma realidade de Portugal em seu presente ou em seu passado.

Ao chegar ao Vale de Santarém, o autor observa uma janela. Lá imagina que haja um vulto de mulher. Idealiza-a de olhos pretos. Pronuncia em voz alta a cor desses olhos, mas um amigo de viagem corrige-o. Sim, ali houve uma mulher; na verdade uma menina, conhecida como “menina dos rouxinóis”, mas ela tinha os olhos verdes como esmeraldas, seu nome era Joaninha. O Romance resume-se na intricada história de uma velhinha com sua neta Joaninha. Ela era órfã de pai e mãe e  tinha por si só a avó. Todas as semanas, um certo Frei Dinis vinha visitá-las e, algumas vezes, trazia notícias de Carlos, seu primo, que já há algum tempo, fazia parte do séquito de D. Pedro (liberais). O filho falecido de D. Francisca fora pai de Joaninha; a filha dessa velha fora mãe de Carlos. Passara o ano de 1830, Carlos formara-se em Coimbra, e só então visitou a família, mas com muitas reticências em relação à avó e Frei Dinis. Carlos também pressentia que ele e a avó mantinham um segredo. Carlos, nas suas andanças, já tinha escolhido uma fidalga para ele, D. Georgina, moça inglesa de fino trato. No entanto, a guerra civil progredia, eram meados de 1833 e ele alista-se. Os Constitucionalistas tinham tomado a Esquadra de D. Miguel, Lisboa estava em poder deles e Carlos era um dos guerreiros da parte liberal (Constitucional). Em 11 de Outubro, os soldados estão todos por volta de Lisboa, as tropas constitucionais vinham ao encalço das absolutistas e, na batalha sangrenta, muitos ficaram feridos. A casa de Joaninha foi tomada por soldados absolutistas (miguelistas), que vigiavam a passagem dos Constitucionais. Numa tarde, depois de passar pelos soldados, os quais aprenderam a respeitá-la, Joaninha resolve passear entre várias árvores. Encontrando um lugar fresco e tranquilo, ela adormece, ouvindo o cantar dos rouxinóis.
Um oficial constitucional recém-chegado de Lisboa entrou cautelosamente embaixo daquelas árvores e se deparou com o quadro tocante. Era Carlos, que regressava ao Vale. Reconhecendo a prima, a quem deixara com ar infantil há dois anos. Ele segura em sua mão e desperta-a. A princípio, Joaninha pensa que seja um sonho, porém recupera-se do excesso de emoção e ambos se beijam calorosamente. Ela contou a Carlos sobre a cegueira da avó, sobre seus sofrimentos e, escondidos dos sentinelas, despedem-se, prometendo verem-se no mesmo lugar, no dia seguinte.Ele pede que não diga a ninguém sobre sua chegada ao Vale. Só que Carlos sabia que Georgina o esperava, e a sua mente tornou-se confusa, pois já não sabia se amava Georgina.
No dia seguinte, Carlos vai ao encontro, porém suas atitudes frias fazem Joaninha desconfiar que ele não a ama. Ela deseja que ele vá visitar a pobre velha, mas Carlos mente dizendo que não poderia sair sem autorização de seu superior. Joana então se antecipa em dizer-lhe que ele deva ter uma mulher a quem ama, mas ele nega.
Fazendo referência à sangrenta batalha de Almoster (18 de fevereiro de 1834), na qual os liberais saem vitoriosos, o narrador revela que Carlos fora ferido gravemente. Primeiro fora levado a um hospital de Santarém, mas depois acordou em uma cama de limpos lençóis, onde duas pessoas cuidavam dele: uma elegante jovem loira de olhos azuis e um velho que se retirava quando percebia que Carlos poderia despertar: era Georgina e Frei Dinis. Ela, depois de alguns dias, vendo-o recuperado, diz que haverá de partir, pois ele precisa regressar aos seus familiares. Revela que D. Francisca e Joaninha não sabem de sua situação e que Frei Dinis também está ali a cuidar dele. Carlos fica decepcionado. Ela diz que não o ama mais e que sabia do amor dele por Joaninha. Ele defende-se e amaldiçoa o velho Frei Dinis. Este entra para defender-se, pois estava no quarto ao lado.
Carlos esbraveja contra Frei Dinis, fica em estado de fúria e acusa-o de ter matado seu pai e cegado sua avó. O velho confirma o assassinato e pede perdão por ele e pela mãe de Carlos, de quem fora amante.
O moço não contém a sua fúria, lança mão de um candeeiro e parte para vingar-se de Frei Dinis. Este lhe estende a cabeça, numa atitude suicida, dizendo que ele poderá matá-lo, pois já pagou demais pelos seus crimes. No segundo que antecipava a tragédia, entra no recinto D. Francisca e Joaninha. A velha grita que aquele homem era seu pai! Georgina, não se sentindo mais parte da cena, retira-se para sempre.
Carlos desfalece diante da revelação. Frei Dinis explica tudo: Ele era amante da mãe de Carlos. Um dia, o marido dela e o cunhado (pai de Joaninha e filho de D. Francisca) se juntaram para assassiná-lo. Ele, no escuro, conseguiu defender-se e matou a ambos. Quando foi desfazer-se dos corpos, atirando-os ao Tejo, reconheceu-os. Desde esse dia, a agonia veio tomar conta dele: revelou tudo à amante que morreu de desgosto, não bastando, ainda contou à velha Francisca, a qual cegou de tanto chorar pelo filho assassinado (pai de Joaninha) e pela filha morta (mãe de Carlos), Dinis refugiou-se num convento para tentar livrar-se da culpa que não o largava. Quase tudo que tinha, passou para o nome de D. Francisca e tornou-se um Frei Franciscano dos mais rigorosos e penitentes.
Quando terminou de narrar sua história, Carlos abraçou a avó e o pai em silêncio e saiu dizendo que voltaria logo. Não voltou. Três dias depois, Joaninha recebeu uma carta de Carlos.

A carta de Carlos à Joaninha

Na sua longa carta à prima, em que procura justificar-se, Carlos faz uma reflexão em torno daquilo que teria sido seu passado recente e, em nome disso, quer obter o perdão dela. Começa por contar-lhe que havia conhecido em Inglaterra, numa propriedade rural onde ficara hospedado, três formosas irmãs, a quem se afeiçoara e a quem “flertava” com frequência. E eis que Carlos se apaixona por uma delas, Laura. Porém esta não poderia ser sua noiva, pois já estava prometida a um capitão da Companhia Britânica das Índias Orientais. No dia em que Laura parte para prepara-se para seu casamento, Carlos entra em tristeza profunda e afasta-se da casa das amigas. No entanto, outra irmã, Júlia, faz o papel da conselheira e amiga, mantendo-o a par das notícias sobre Laura, até que esta finalmente se casasse. Ele conta que Júlia acaba por cativá-lo tanto que chega a considerar a ideia de estar apaixonado por ela. Para recuperar-se da decepção amorosa, resolve retirar-se para Londres, onde fica por um tempo. Volta ao condado (lugar onde moravam as moças) porque Júlia escreve-lhe insistentemente. Ao regressar, antes que entre na propriedade, vê surgir um belo vulto de mulher: era a terceira irmã: Georgina. Esta lhe conta sobre a doença de Júlia e o quanto seria bom para a convalescente poder vê-lo novamente. Infelizmente, Júlia falece. Georgina e Carlos aproximam-se e apaixonam-se. Ele precisa viajar a Portugal por causa da Guerra, mas, mesmo distante, envia-lhe cartas frequentes, com apaixonadas declarações. Enfim, depois de estar com Joaninha, Carlos torna-se mais frio em suas palavras e a inglesa percebe.
No final de sua carta, Carlos reconhece que é um monstro, um aleijão moral, por isso não poderia nunca fazer Joaninha feliz.
“Adeus, Joana, adeus, prima querida, adeus, irmã da minha alma! Tu acompanha nossa avó, tu consola esse infeliz que é o autor da sua e das nossas desgraças. Tu, sim, que podes; e esquece-me.
Eu, que nem morrer já posso, que vejo terminar desgraçadamente esta guerra no único momento em que a podia abençoar, em que ela podia felicitar-me com uma bala que me mandasse aqui bem direita ao coração, eu que farei?
Creio que me vou fazer homem político, falar muito na pátria com que me não importa, ralhar dos ministros que não sei quem são, palrar dos meus serviços que nunca fiz por vontade; e quem sabe?... talvez darei por fim em agiota, que é a única vida de emoções para quem já não pode ter outras.
Adeus, minha Joana, minha adorada Joana, pela última vez, adeus!”

Metalepse : encontro do autor com a sua ficção – o autor torna-se parte da narração, conversa com as personagens e, inclusive, lê a carta de Carlos.
Na volta para Lisboa, Garrett quis entrar em contato mais íntimo com o ambiente em que haviam ocorrido os fatos narrados pelo amigo de viagem. Deixou que seus companheiros seguissem a viagem e aproximou-se da casa do Vale. Para a sua surpresa, encontrou ainda lá o frade e a velha cega que estava sempre a dobar (tecendo por meio de uma dobadoura), mas agora louca e alheia de todos, esperando a morte. Ao perguntar pelos outros personagens, recebe a informação de que Joaninha teria enlouquecido e morrido nos braços da avó e de Georgina, esta era abadessa (superiora de um mosteiro de religiosas) fundou um convento em Inglaterra, e Carlos, este, havia se tornado barão. Frei Dinis entrega a carta de Carlos ao autor. Ao terminar de ler a carta, Garrett afasta-se, deixando o frei em seu silêncio amargurado. Encontra-se com os amigos em Cartaxo, depois seguem para Lisboa:
“Assim terminou a nossa viagem a Santarém: e assim termina este livro.
Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porém fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra.
Se assim o pensares, leitor benévolo, quem sabe? pode ser que eu tome outra vez o bordão de romeiro, e vá peregrinando por esse Portugal fora, em busca de histórias para te contar.
Nos caminhos-de-ferro dos barões é que eu juro não andar.
Escusada é a jura, porém. Se as estradas fossem de papel, fá-las-iam, não digo que não. Mas de metal!
Que tenha o Governo juízo, que as faça de pedra, que pode, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito na nossa boa terra.”

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