Total de visualizações de página

terça-feira, 30 de outubro de 2018

A TEUS PÉS, Ana Cristina César


A TEUS PÉS, Ana Cristina César

(Análise: Luci Rocha)






A Teus Pés, de 1982, é o último livro de Ana Cristina César, e único publicado por editora, reúne os três livros anteriores de edição independente: Luvas de Pelica, Correspondência Completa e Cenas de Abril. Retrata com dor e elegância as vivências urbanas e as impressões cotidianas de uma poeta ao mesmo tempo densa e delicada.
Nesta obra, além de utilizar formas que nos remetem a escritas “íntimas”, a autora ousa mais, fragmenta mais, como se fizesse uma verdadeira colagem cifrada de frases vindas de diversos lugares.
“A entrelinha quer dizer: tem aqui escrito uma coisa, tem aqui escrito outra, e o autor está insinuando uma terceira. Não tem insinuação nenhuma, não. (...) Eu acho que, no meu texto e acho que em poesia, em geral, não existe entrelinha. (...) Existe a linha mesmo, o verso mesmo. O que é uma entrelinha? Você está buscando o quê? O que não está ali?”.
Deve-se destacar que, na “poesia marginal” dos anos 70, a autora atualiza dois gêneros usualmente considerados literatura menor: a carta e o diário. Resgata, dessa forma, não só o coloquialismo da linguagem, mas também a profunda interação entre o sujeito lírico e seu leitor implícito.
(Fonte: https://www.passeiweb.com/estudos/livros/a_teus_pes)

O que falam seus amigos:

"Muito discreta na vida pessoal e bastante indiscreta na poesia". (Armando Freitas Filho).

“Interlocutor suposto, daí as elipses. Relação de esconde-esconde. Especular.
Cifrada, fragmentada, mas era poesia. Carga poética muito grande. Liberdade e densidade.
Poesia mimeógrafo: movimento contra as editoras da época. A teus pés é o único livro publicado em vida por editora. Sucinta, ferina e aguda.”
 (Helô Buarque de Holanda)

“Poesia marginal era descartada e improvisada. Começa a aparecer num momento de censura. Repressão. Beatles, Rollings Stones, Jane Joplin. Pacto com a revolução. 
Ana C. era mais literária, dialogando com a tradição: marginal sem o ser...” (Chacal)
Quanto mais se aproxima dela, mais se afasta. Ela procurava ver o outro lado das coisas; a ruptura, a não-poesia. Mania de cartas. Correspondência imaginária. Interlocução como se ela dissesse para o coração de quem está lendo.
Estilo muito original. Tenta agarrar o tempo presente. Parece que fala da vida enquanto ela acontece. O leitor acompanha a elaboração poética. Aproximação entre leitor e eu-lírico. Leitor confidente. (Paulo José)

"Isto aqui não é um livro. Isto sou eu." (Ana C.)
"Quando você escreve tem sempre uma história que não pode ser contada." (Ana C.)


PARA REFLETIR

ü  Autopublicação (como internet hoje).
ü  Feminismo à frente de seu tempo.
ü  Figurino (roupas) que expressava ideias.
ü  Autobiografia.
ü  Sensibilidade.
ü  Pontos de contato com Clarice Lispector.
ü  Ironia e hermetismo.
ü  Angústia.
ü  Suicídio.
ü  Ana C. o eu lírico de Ana Cristina Cruz César.



ALGUNS POEMAS

Obs: A ausência de títulos, de pontuação ou letras maiúsculas, em alguns poemas, são marcas típicas da poética de Ana Cristina César. Os textos aqui apresentados foram reproduzidos exatamente como aparecem na obra original da autora (Poética). A numeração foi acrescentada para facilitar a separação dos poemas escolhidos para este material.

1

olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas
(Cenas de Abril)


2
Anônimo

Sou linda; gostosa; quando no cinema você roça o ombro em mim aquece, escorre, já não sei mais quem desejo, que me assa viva, comendo coalhada ou atenta ao buço deles, que ternura inspira aquele gordo aqui, aquele outro ali, no cinema é escuro e a tela não importa, só o lado, o quente lateral, o mínimo pavio. A portadora deste sabe onde me encontro até de olhos fechados; falo pouco; encontre; esquina da Concentração com Difusão, lado esquerdo de quem vem, jornal na mão, discreta.
(Cenas de Abril)

3

Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes barganhando
uma informação difícil. Agora silêncio; silêncio eletrônico,
produzido no sintetizador que antes construiu a ameaça das
asas batendo freneticamente.
Apuro técnico.
Os canais que só existem no mapa.
O aspecto moral da experiência.
Primeiro ato da imaginação.
Suborno no bordel.
Eu tenho uma ideia.
Eu não tenho a menor ideia.
Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.
Memórias de Copacabana. Santa Clara às três da tarde.
Autobiografia. Não, biografia.
Mulher.
Papai Noel e os marcianos.
Billy the Kid versus Drácula.
Drácula versus Billy the Kid.
Muito sentimental.
Agora pouco sentimental.
Pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que o seu
amor de ontem.
Gertrude: estas são ideias bem comuns.
Apresenta a jazz-band.
Não, toca blues com ela.
Esta é a minha vida.
Atravessa a ponte.
É sempre um pouco tarde.
Não presta atenção em mim.
Olha aqueles três barcos colados imóveis no meio do grande rio.
Estamos em cima da hora.
Daydream.
Quem caça mais o olho um do outro?
Sou eu que admito vitória.
Ela que mora conosco então nem se fala.
Caça, caça.
E faz passos pesados subindo a escada correndo.
Outra cena da minha vida.
Um amigo velho vive em táxis.
Dentro de um táxi é que ele me diz que quer chorar mas não chora.
Não esqueço mais.
E a última, eu já te contei?
É assim.
Estamos parados.
Você lê sem parar, eu ouço uma canção.
Agora estamos em movimento.
Atravessando a grande ponte olhando o grande rio e os três
barcos colados imóveis no meio.
Você anda um pouco na frente.
Penso que sou mais nova do que sou.
Bem nova.
Estamos deitados.
Você acorda correndo.
Sonhei outra vez com a mesma coisa.
Estamos pensando.
Na mesma ordem de coisas
Não, não na mesma ordem de coisas.
É domingo de manhã (não é dia útil às três da tarde).
Quando a memória está útil.
Usa.
Agora é a sua vez.
Do you believe in love...?
Então está.
Não insisto mais.
(A teus pés)

4

O tempo fecha.
Sou fiel aos acontecimentos biográficos.
Mais do que fiel, oh, tão presa! Esses mosquitos que não largam!
Minhas saudades ensurdecidas por cigarras! O que faço aqui no
campo declamando aos metros versos longos e sentidos? Ah
que estou sentida e portuguesa, e agora não sou mais, veja, não
sou mais severa e ríspida: agora sou profissional.
(A teus pés)

5

Segunda história rápida sobre a felicidade — descendo a colina
ao escurecer — meu amor ficou longe, com seu ar de não
ter dúvida, e dizia: meus pais... — não posso mais duvidar dos
meus passinhos, neste sítio — agora você fala até mais baixo,
delicada que eu reparo mais que os outros depois de um tempo
fora — é como voltar e achar as crianças crescidas, e sentar na
varanda para trocar pensamentos e memórias de um tempo que
passou — mas quando eu fui (aquele dia no aeroporto) ainda
havia ares de mistério — agora, é agora, descendo esta colina,
sem nenhum, que eu conto então do amor distante, e não imito
a minha nostalgia, mas a delicadeza, a sua, assim feliz.
(A teus pés)

6

sete chaves

Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha grande história passional, que guardei a sete chaves, e meu coração bate incompassado entre gaufrettes. Conta mais essa história, me aconselhas como um marechal-do-ar fazendo alegoria. Estou tocada pelo fogo. Mais um roman à clé? Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher moderna. Nem te conheço. Então: É daqui que eu tiro versos, desta festa — com arbítrio silencioso e origem que não confesso — como quem apaga seus pecados de seda, seus três monumentos pátrios, e passa o ponto e as luvas.
(A teus pés)


7


mocidade independente

Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem
medir as consequências. Por que recusamos ser proféticas? E
que dialeto é esse para a pequena audiência de serão? Voei pra
cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma
graça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, por
você, e furiosa: é agora, nesta contramão.
(A teus pés)


8

cartilha da cura

As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios.
(A teus pés)

9

Preciso voltar e olhar de novo aqueles dois quartos vazios.
(A teus pés)

10
atrás dos olhos das meninas sérias

Mas poderei dizer-vos que elas ousam? Ou vão, por injunções
muito mais sérias, lustrar pecados que jamais repousam?
(A teus pés)

11

atrás dos olhos das meninas sérias

Aviso que vou virando um avião. Cigana do horário nobre do
adultério. Separatista protestante. Melindrosa basca com fissura
da verdade. Me entenda faz favor: minha franqueza era
meu fraco, o primeiro sidecar anfíbio nos classificados de aluguel.
No flanco do motor vinha um anjo encouraçado, Charlie’s
Angel rumando a toda para o Lagos, Seven year itch, mato sem
cachorro. Pulo para fora (mas meu salto engancha no pedaço de
pedal?), não me afogo mais, não abano o rabo nem rebolo sem
gás de decolagem. Não olho para trás. Aviso e profetizo com
minha bola de cristais que vê novela de verdade e meu manto
azul dourado mais pesado do que o ar. Não olho para trás e sai da
frente que essa é uma rasante: garras afiadas, e pernalta.
(A teus pés)


12
vacilo da vocação

Precisaria trabalhar — afundar —
— como você — saudades loucas —
nesta arte — ininterrupta —
de pintar —
A poesia não — telegráfica — ocasional —
me deixa sola — solta —
à mercê do impossível —
— do real.                 
(A teus pés)

                     
13

é muito claro
amor
bateu
para ficar
nesta varanda descoberta
a anoitecer sobre a cidade
em construção
sobre a pequena constrição
no teu peito
angústia de felicidade
luzes de automóveis
riscando o tempo
canteiros de obras
em repouso
recuo súbito da trama
Quando entre nós
só havia
uma carta certa
a correspondência
completa o trem
os trilhos
a janela aberta
uma certa paisagem
sem pedras ou
sobressaltos
meu salto alto
em equilíbrio
o copo d’água
a espera do café
(A teus pés)




14

cabeceira

Intratável.
Não quero mais pôr poemas no papel
nem dar a conhecer minha ternura.
Faço ar de dura,
muito sóbria e dura,
não pergunto
“da sombra daquele beijo
que farei?”
É inútil
ficar à escuta
ou manobrar a lupa
da adivinhação.
Dito isto
o livro de cabeceira cai no chão.
Tua mão que desliza
distraidamente?
sobre a minha mão
(A teus pés)

15

samba-canção

Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone — taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras (era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...
(A teus pés)