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sexta-feira, 20 de novembro de 2015

A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA, NOVELA DO LIVRO SAGARANA (1946)

A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA, NOVELA DO LIVRO SAGARANA (1946)

João Guimarães Rosa

Introdução

Classificadas como novelas, as “estórias” de Sagarana apresentam como cenário o interior de Minas Gerais, com seus povoados, vilas, vilarejos, arraiais, cidadelas, onde vivem fazendeiros, boiadeiros, capiaus, valentões, jagunços, belas caboclas, caboclos apaixonados, padres, “coronéis”, “majores”, crianças etc.
Guimarães Rosa pertence ao nosso Terceiro Momento Moderno, apresentando uma prosa universalizante e fabulosa, que se diferencia do regionalismo crítico e político do Segundo Momento, se comparado a escritores como Graciliano Ramos, Rachel de Queirós e Jorge Amado.
A hora e a vez de Augusto Matraga figura como último enredo apresentado no livro Sagarana e, segundo Guimarães Rosa, história mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras, (...). Quanto à forma, representa para mim vitória íntima, pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que eu procurava descobrir.
Quanto à linguagem, Rosa apresenta, desde os primeiros trabalhos, uma novidade na construção linguística, que passa pelo experimentalismo, pois ele une o popular ao erudito e o regional ao universal, extraindo novos termos e sentidos poéticos por meio de figuras de linguagem (onomatopeias, comparações, metáforas, sinestesias, anacolutos, aliterações, assonâncias, etc.), neologismos, coloquialismos sertanejos, ditados populares, aforismos inéditos, cantigas sertanejas e interjeições típicas do grupo social apresentado (por exemplo, o bando de jagunços do Seu Joãzinho Bem-Bem)
Além da novidade linguística, os temas universais revelam-se em cada enredo de Rosa. Na novela analisada, surgem grandes temas como: o bem x mal; a violência; o misticismo; a conversão; a fé, a amizade, as tentações da vida.
O narrador está em 3ª pessoa onisciente, que revela os sentimentos mais profundos de cada personagem.
O cenário resume-se a lugares pelos quais passam o protagonista e são identificados como Pindaíbas, Arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do córrego do Murici, Povoado do Tombador e arraial do Rala-Coco. A fauna e a flora mineiras são ricamente apresentadas:

Mas, afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo do pote, marinhava céu acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um para o outro lado, e um desperdício de verdes cá em baixo — a manhã mais bonita que ele já pudera ver.
Estava capinando, na beira do rego.
De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda outro, mais baixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gralhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um coro.
Depois, um grupo verde-azulado, mais sóbrio de gritos e em fileiras mais juntas.
— Uai! Até as maracanãs!
E mais maitacas. E outra vez as maracanãs fanhosas. E não se acabavam mais. Quase sem folga: era uma revoada estrilando bem por cima da gente, e outra brotando ao norte, como pontozinho preto, e outra — grão de verdura — se sumindo no sul.
— Levou o diabo, que eu nunca pensei que tinha tantos! E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, uma esquadrilha sobrevoando outra... E mesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um casal de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa: os únicos que interromperam, por momentos, a viagem, foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabecinhas amarelas, que não levam nada a sério, e que choveram nos pés de mamão e fizeram recreio, aos pares, sem sustar o alarido — rrrl-rrril! rrrl-rrril!...
Mas o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um bando grazinava alto, risonho, para o que ia na frente: — Me espera!... Me espera!... — E o grito tremia e ficava nos ares, para o outro escalão, que avançava lá atrás.
— Virgem! Estão todas assanhadas, pensando que já tem milho nas roças... Mas, também, como é que podia haver um de-manhã mesmo bonito, sem as maitacas?!...
O sol ia subindo, por cima do voo verde das aves itinerantes. Do outro lado da cerca, passou uma rapariga. Bonita! Todas as mulheres eram bonitas. Todo anjo do céu devia de ser mulher. (Pág. 376 e 377)

Pela estrutura narrativa, pela riqueza de sua simbologia e pelo tratamento exemplar concedido à luta entre o bem e o mal e às angústias, que essa luta provoca em cada homem durante toda a vida, este conto é considerado o mais importante de Sagarana.
(Profª Luci Rocha)



Resumo

Eu sou pobre, pobre, pobre,
vou-me embora, vou- me embora.
Eu sou rica, rica, rica
vou-me embora, daqui...

(Cantiga Antiga)
Sapo não pula por boniteza,
mas, porém, por percisão!
(Provérbio Capiau)
Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves das Pindaíbas e do Saco da Embira. Ou Nhô Augusto - O homem - nessa noitinha de novena, num leilão de atrás de igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici.

Augusto Matraga foi criado por uma avó, que o queria padre. No entanto, de herança de pai covarde e tio criminoso, enveredou para o mal.
A narrativa inicia-se em meio a uma festa religiosa, em que, num leilão, Matraga arrebata por cinquenta mil-réis uma prostituta, desagradando um capiau rude, de testa cabeluda, que estava interessado por ela. Matraga nem chega a usá-la, alegando que era muito feia: “Você tem perna de Manuel Fonseca: uma fina, outra seca!”
            Ele, de fato era pessoa rude, não civilizada. Além de bandido e violento, tratava com pouco caso sua esposa, Dionóra, e sua filha, Mimita. Só queria saber de jogo, caçada e mulheres de vida fácil.
            No entanto, sua sorte mudou. Sua esposa o abandona, passando a viver, com a filha, em companhia de um homem chamado Ovídio. Matraga não pôde vingar a ofensa, pois recebeu a notícia, dada pelo Quim Recadeiro, de que seus capangas, com exceção de Quim Recadeiro, também o abandonaram, passando para o lado do Major Consilva.
            Augusto vai tomar satisfações pela afronta, sem perceber que o destino virou-se contra ele: não tem mais apoio político, está cheio de dívidas e suas terras estão hipotecadas. Como o próprio narrador comenta, não havia se tocado de que era momento de parar umas rodadas, deixar de jogar, pois o azar havia chegado.
            Ao chegar à fazenda do Major, é cercado pelos capangas do vilão, alguns ex-subordinados de Matraga. Então é espancado, marcado por ferro em brasa e, antes de sofrer o pior, atira-se de um altíssimo barranco. Para seus inimigos, estava morto. Mas é resgatado e cuidado por um casal de velhos negros: Quitéria e Serapião.. Ficou dias inconsciente. Voltou a si, e conhecendo sua situação, desejou a morte.
            Com o tempo, Matraga volta a ter paixão pela vida. Os meses que passa se recuperando das feridas e fraturas é o tempo suficiente para se arrependa dos pecados e abrace ao cristianismo. No seu jeito rude, fica até cômica a convicção em afirmar que vai para o Céu, nem que seja a porrete.
            Começa sua fase de penitências. Vai com os velhinhos a uma propriedade sua perdida e distante, o povoado do Tombador. Mostra-se trabalhador, misto de louco e santo no olhar do povo. Vive dessa forma por quase sete anos.
            Um dia, sofreu uma dura tentação. Um antigo conhecido, o Tião da Teresa, passa por lá e surpreende-se ao descobrir Matraga, agora totalmente mudado. Traz notícias muito inconvenientes: Dionóra estava para se casar com Ovídio, crente de que estava viúva. Major Consilva apoderou-se das terras do protagonista. Quim, frouxo e atrapalhado, havia sido o único a se levantar em defesa do patrão, mas fora morto no momento em que, tomado de fúria, entrara nas terras do Major com a intenção de vingança. Mimita, sua filha, se tornara prostituta.
            É um momento cruel para Augusto. Deus o havia abandonado? Merecia mesmo o Céu? Mas, como o bíblico Jó, resiste bravamente à tentação de buscar vingança.
            E que vem o período de chuvas, que, não por coincidência, é o momento em que Matraga acaba por sentir como se tivesse tirado um peso das costas. As águas, opondo-se ao pó de outras épocas, simbolizam o batismo, a sublimação, a elevação.
            É então que surge o bando de Joãozinho Bem-Bem, homem da mesma estirpe do antigo Augusto Matraga. Suas intenções provavelmente eram malévolas naquela região, mas o amor e a dedicação com que o protagonista o recebe desarma o cangaceiro.
            O bandido intui o poder bélico de Matraga, por isso o convida a fazer parte da empreitada. É uma forte tentação: o herói sente saudade do poder de desmando que possuía. Imagina até a possibilidade de vingar a morte de Quim. Mas resistiu a mais essa tentação. Estava evoluindo a passos largos.
            Joãozinho Bem-Bem parte, deixando Matraga, mas levando uma afeição enorme por ele.
           Dias depois, enquanto Augusto trabalhava, presenciou uma belíssima explosão de pássaros voando. Sua intuição lhe diz algo maravilhoso, que o faz pensar o dia inteiro. Até que toma uma resolução: decide partir. Faz sua viagem em um jumento, animal carregado de simbologia cristã, pois havia carregado Maria às vésperas do nascimento de Cristo. Carregara, pois, o salvador.
            Matraga viaja muitos dias, até chegar ao arraial do Rala-Coco, que estava em polvorosa. O bando de Joãozinho Bem-Bem lá se abancara, prestes a realizar um crime hediondo.
            Um dos capangas do facínora, Juruminho, fora morto pelas costas, Joãozinho resolve vingar-se em cima da família do assassino, pretendendo matar o filho mais novo e entregar as irmãs moças aos seus homens. No momento em que Augusto havia chegado, o pai do fugitivo tinha aparecido e pedido clemência pela vida de inocentes. Joãzinho não se compadece e insiste em vingar a morte de seu amigo Juruminho. Porém, o velho pai suplica em nome nosso Senhor Jesus Cristo e isso comove Augusto.
            É nesse instante que Augusto Esteves intercede. Mesmo havendo um enorme apreço entre Joãozinho e o herói, os dois começam a se desentender. O bandido está tomado de um maligno espírito vingativo. Matraga defende a bondade divina, sempre pedindo para seu opositor evitar uma tragédia injusta, sempre clamando pelo nome de Deus.
            O inevitável acontece. Há uma terrível luta. Tiros de todos os lados. Os dois saem feridos, mas Matraga, sempre invocando o nome do Senhor e pedindo para seu amigo se arrepender dos pecados, acaba vencendo, rasgando a barriga de Joãozinho, que morre segurando nas mãos suas entranhas.
            Augusto Matraga estava morrendo, mas contente. Aclamado como santo e salvador entre o povo que tenta socorrê-lo, ainda tem tempo para fazer com que respeitassem o cadáver de Joãozinho Bem-Bem, mandando que o enterrassem dignamente. Além disso, pede a um primo que ali está, o João Lomba, que leve a bênção a sua filha Mimita, e diga a Dionóra que está tudo bem...
            Morre, porque havia chegado a sua hora e a sua vez. Havia realizado sua missão, cumprido os planos de um misterioso desígnio divino. Estava salvo. Ia para o Céu.

Resumo adaptado e corrigido de:   
http://www.passeiweb.com/estudos/livros/a_hora_e_vez_de_augusto_matraga_conto

Problemática e principais temas

A novela A Hora e Vez de Augusto Matraga ocupa um lugar de destaque dentro da antologia de Sagarana, uma vez que representa o fechamento em círculo da temática iniciada em O Burrinho Pedrês de que um único momento pode valer por toda uma existência. Sabemos que a força mística de Guimarães Rosa é também manifestada na presente obra, já que, simbolicamente, o protagonista da ação é alçado à condição de um Cristo. Nhô Augusto deixa o arraial montado num burrinho. Este é considerado até mesmo na obra como um elemento sagrado (... porque mãe Quitéria lhe recordou ser o jumento um animalzínho assim meio sagrado, muito misturado às pas­sagens da vida de Jesus), já que na Bíblia Cristo entrou em Jerusalém montado num desses animais. A caminhada do protagonista simboliza o homem em busca de seu destino. E qual seria o destino a ser cumprido? Claro que a salvação de Matraga só poderia surgir a partir da justiça divina com a negação de seu próprio ser físico em favor da justiça entre os homens.
Ao salvar inocentes da sanha vingativa de Joãozinho Bem-Bem, Nhô Augusto encontra também a sua redenção final, obtida com seu trabalho, sua reza e a fé de que teria sua hora e vez. Matraga dá a vida, como Cristo, pelos seus semelhantes (Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por mór de salvar as famílias da gente!...)
A força temática desse conto de que um momento pode valer por toda uma vida, encontra em Nhô Augusto o momento de êxtase dentro da obra de Guimarães Rosa. A persistência e fé do protagonista, verdadeiro herói mítico moderno, faz com que a purificação de sua alma seja completa e sua santificação plena.
A trajetória heroica de Augusto Matraga, que desce do espaço dos poderosos para o dos oprimidos e marginalizados, recorda-nos o fato de que realmente parece não haver mais espaço para as grandes epopeias clássicas, para os heróis míticos do passado, pois o homem moderno traz em si não apenas o herói, mas também o covarde, não só o bem, mas também o mal está, como o protagonista comprova, mais próximo do homem barroco com suas dualidades e ambiguidades do que do clássico. As verdadeiras epopeias modernas, como podemos considerar em A hora e vez de Augusto Matraga, são protagonizadas por homens comuns que se entregam à derrota ou lutam arduamente através de seus corpos e de suas almas, esperando que surja a sua hora e vez.


Personagens

Augusto Esteves Matraga - é o protagonista da obra. Muda de nome de acordo com as passagens significativas de sua vida, o que nos permite enxergar nele uma projeção dos heróis míticos. Matraga transforma-se num homem bom e abnegado, trabalhador e rezador, depois de ter sido mau, mulherengo e violento. Seu comportamento desregrado levou-o a perder a fortuna, a mulher e a filha, tendo quase perdido a vida. Depois de uma surra aplicada pelos capangas do Major Consilva, Matraga sentiu-se renascer como outro homem. Foi obrigado a esconder-se dos inimigos ao pé de um morro, com um casal de pretos velhos que o salvou. Terminou sua trajetória matando o famoso chefe de jagunços Joãozinho Bem-Bem para salvar uma família inocente. Na batalha, também perdeu a vida, mas foi em paz.
Quitéria e Serapião: Casal de velhos, isolados e religiosos, que cuidaram da recuperação de Nhô Augusto e colaboraram com sua redenção.
Angélica e Tomázia (Sariema): prostitutas do córrego do Murici. Sariema foi arrematada em leilão por Nhô Matraga.
Quim Recadeiro: Homem de confiança de Nhô Augusto. Covarde, mas leal. Depois do sumiço de Augusto, enfrenta o Major Consilva e é morto com mais de vinte balas.
Major Consilva - Era inimigo de Nhô Augusto, tendo também sido inimigo do pai do protagonista. Homem mau e rico, toma posse das propriedades de Nhô Augusto, depois da suposta morte deste.
Dona Dionóra: Era mulher de Nhô Augusto. Acabou não aguentando mais o desprezo do marido e fugiu com Ovídio Moura.
Ovídio Moura: Rico fazendeiro, que amava Dionóra e tirou-a do marido, fazendo-a feliz.
Mimita: É filha de Nhô Augusto. Percebe, ainda menina, que o pai não gosta dela e da mãe. Acaba se tornando prostituta, depois de ser levada do lugar por um mascate. Nessa ocasião, tinha 17 anos.
Joãozinho Bem-Bem - Famoso chefe de jagunços. Homem temido e destemido no sertão. Faz justiça com as próprias mãos ou armas, defendendo seus aliados e eliminando seus inimigos. Pressente em Nhô Augusto uma força oculta que os aproxima. Representa a tentação que surge para destruir os projetos de redenção do protagonista, mas por outro lado, também colabora com esse projeto quando mata Augusto.
Tião da Thereza - Conterrâneo de Nhô Augusto. Encontra-o no povoado do Tombador e coloca-o a par dos acontecimentos posteriores à sua suposta morte.
João Lomba: primo distante de Augusto Esteve, que o encontra na hora de sua morte, no arraial do Rala-Coco.
Juruminho, Flosino Capeta, Tim Tatu-tá-te-vendo, Zeferino, Epifânio, Teófilo Sussuarana, Cangussu: capangas de Joãzinho Bem-Bem. (Luci Rocha)

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