Total de visualizações de página

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Amor, Clarice Lispector


(Análise de Luci Rocha)

            O livro Laços de família, de Clarice Lispector, foi publicado em 1960, porém alguns de seus enredos foram escritos entre as décadas de 40 e 50. É uma coletânea de 13 contos entre os quais se encontra a história de Ana, no conto Amor, escrito exatamente em 1952.
            Nas palavras do poeta e teórico de Literatura Affonso Romano de Sant’Anna,
            Este conto “AMOR” (Laços de Família) me parece exemplar para o estudo de um dos temas mais fortes de Clarice – a epifania. Tratei disto primeiramente em Análise estrutural de romances brasileiros (1974) e mais amplamente no ensaio O ritual epifânico do texto (1988), que acompanha o volume A paixão segundo G.H. editado pela UNESCO/UFSC e que republiquei em Que fazer de Ezra Pound (Imago).
            A trajetória da personagem Ana – simples dona de casa – que certo dia sai da “raiz firme das coisas” e penetra “a hora perigosa da tarde” experimentando uma revelação/crise/náusea que a expulsa da “cegueira” cotidiana, é o movimento que vai se repetir em outros contos e nos romances de Clarice. Seus personagens estão sempre sendo submetidos a um conhecimento súbito da “verdade” em meio à banalidade da vida. Há um “rito de passagem”, uma “iniciação” perigosa e sublime, que arrebata não só seus personagens, mas também o leitor e a própria narradora.
            E desse arrebatamento que fala toda a obra de Clarice. E a melhor literatura é isso: é a fratura, o corte, o impacto dentro da trivialidade da vida. Clarice dedicou sua vida a revelar este espanto. E é este espanto que deixa os seus leitores igualmente atordoados.

(Lispector, Clarice. 1920-1977. Clarice na cabeceira/ Clarice Lispector. Org. de Teresa Monteiro – Rio de Janeiro: Rocco. 2009. Pág. 25)

            Observar os tempos verbais empregados nesse conto pode ser uma boa estratégia de interpretação inicial, já que Ana, no momento de sua epifania (entendida aqui como uma revelação do sentido existencial da personagem), encontrava-se no bonde, depois de fazer as compras para o jantar que daria naquele mesmo dia.
            O pretérito perfeito, utilizado no início da narrativa, remete-nos a um passado recente; enquanto o pretérito imperfeito e o mais que perfeito darão ideia de cenas rememoradas pela personagem, revelando-nos  impressões do cotidiano e o real sentido da vida que escolhera.
            O leitor acompanhará um dia da vida da personagem e, por meio de um narrador em 3ª pessoa onisciente, acabará por ter acesso às reflexões e pensamentos (fluxo de consciência) que a invadem, desde o momento em que se recosta no banco do bonde e prepara-se para voltar para casa, até quando se deita, no final do dia.

            Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.
            Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores.

            Percebe-se que o narrador investiga os pensamentos de Ana para revelar que ela escolhera aquela vida de esposa, mãe e dona de casa, porém havia ali uma lacuna que Ana pressentia, inconscientemente, mas ainda não compreendia.
            Essa mulher esmerava-se em cuidar da casa, dos filhos, do marido, da rotina, como quem faz uma obra de arte, pois aquela deveria ser a fonte de felicidade dentro dos padrões sociais que escolhera. No entanto,

            Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se.

            A inquietação de Ana pode ser entendida como um mal estar existencial que a acometia quando terminava seus afazeres e, inevitavelmente, deparava-se com seu universo interior.

            Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

            Naquele dia, receberia os irmãos com suas famílias para o jantar, por isso tinha ido comprar ingredientes. Tinha um saco de tricô que fora feito por ela mesma e nele trazia ovos.

            O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
            O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.
            Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
            Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.
Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

            A parte transcrita revela o momento de epifania de Ana e, aqui, por meio de imagens metaforizadas, a autora vai apresentando as sensações que  a personagem experimenta (em negrito).
            Certamente, o ponto alto do conto para o que interessa a esse enredo é o encontro de Ana com a imagem de um cego mascando chicles e, em seguida, os ovos quebrados e suas gemas se escorrendo pela rede de tricô.
            Talvez a vida de Ana se resumisse naquela cena: vivia na escuridão (fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo), mergulhada em gestos automáticos, tecendo com as próprias mãos o mundo dentro do qual estaria segura e, de repente, dava-se conta de que tudo aquilo pudesse estar errado, de que havia outra lógica existencial, com outra moral. Sua felicidade era frágil, por isso tinha medo.
            A partir disso, o leitor acompanha um tipo de náusea que se opera em Ana, iniciando-se com uma certa intranquilidade, seguida de medo, amor, asco e piedade pelo cego. A crise por que Ana passava parece tornar seus sentidos mais aguçados:

            O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas.

            Sem perceber, ela passara de seu ponto. Desceu com o saco de tricô nas mãos; a rede ainda melada pelas gemas.  Chegou ao Jardim Botânico e sentou-se em um banco, depositando o saco no chão. Assim, durante horas, Ana observa o mundo que se apresenta com outra lógica.

            A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

            Uma longa observação do espaço delineia o fluxo de consciência da personagem Ana.      Ela mira uma aleia (fileira de árvores), um atalho, os ramos, as sombras, as frutas, os cipós, as abelhas, as aves, um gato; sente o cheiro da terra e experimenta um misto de fascínio e nojo. O reino animal, mineral e vegetal parecem atravessar os sentidos da mulher, fazê-la experimentar uma nova realidade, muito diferente daquela da qual se desviara há algumas horas. Sim, ela constatava que ali havia um “trabalho secreto” e o narrador, por meio do discurso indireto livre, escava os pensamentos de Ana:

            De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada?

            As antíteses e os paradoxos que surgem durante a narração dos momentos em que Ana passa no Jardim Botânico colaboram para que o leitor compreenda a crise existencial dela:  

“A crueza do mundo era tranquila”, “Ao mesmo tempo que imaginário – era um mundo de se comer com os dentes”, “Como a repulsa que precedesse a entrega” , “(...) a mulher tinha nojo e era fascinante”, “(...) o mundo era tão doce que apodrecia”, “(...) um mundo fascinante, sombrio”, “A decomposição era profunda, perfumada”, “O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno”, “Era fascinante e ela sentia nojo”.

            Ana pensa nas crianças e sente-se culpada. Num sobressalto, pega o saco de tricô e corre em direção ao portão do Jardim. O guarda abre e ela vai para casa.
            Chegando, olha para tudo limpo e brilhante, estranha aquele mundo.

            E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver.

            Seu filho era um ser estranho que apertava entre os braços, ele foge, pois ela quase o machuca. Pensava no cego e no Jardim; tinha medo e vergonha. Sua crise amplia-se e sua piedade pelo cego retorna. Na cozinha, mata uma formiga, ouve as gotas de água no tanque, vê os besouros de verão e constata novamente que Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror.
            Chega a hora do jantar e tudo transcorre normalmente. Conversam e riem, as crianças brincam no tapete, porém a metafísica de Ana não desaparece.
Finalmente, será conduzida de volta à sua rotina pelas mãos do marido que a “salva” do perigo de viver, quando a chama para dormir.

            E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.
            Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.
            Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.
             — O que foi?! gritou vibrando toda.
            Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:
            — Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.
            Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.
            — Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.
            — Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.
            Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde.        Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
            Acabara-se a vertigem de bondade.
            E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.



Bibliografia

Lispector, Clarice. 1920-1977. Clarice na cabeceira/ Clarice Lispector. Org. de Teresa Monteiro – Rio de Janeiro: Rocco. 2009.





           





Nenhum comentário:

Postar um comentário