Total de visualizações de página

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

NEGRINHA, Monteiro Lobato (1920)

NEGRINHA, Monteiro Lobato (1920)

1) Estrutura: Conto
3) Período Literário: Pré-Modernismo
2) Contexto histórico: Embora distante três décadas da proclamação da República e da extinção da escravidão, o Brasil ainda vivia efeitos da transição da Monarquia para a República e do trabalho escravo para o trabalho livre.
            O país, que até então tinha sua estrutura social baseada no meio rural e a estrutura econômica dependente da mão de obra escrava, passava por inúmeras transformações. A indústria começava a se desenvolver e o processo de urbanização avançava. O Brasil modernizava-se, mas o preconceito racial contra aqueles que tinham a pele negra ou parda, antigos escravos e seus descendentes, permanecia o mesmo.

4) Cenário: uma fazenda cuja proprietária chama-se D. Inácia.
5) Narrador: 3ª pessoa onisciente.
6) Linguagem: fluente, moderna, vocabulário regional.
7) Temas:  a mentalidade escravocrata que persistia tempos depois da abolição; violência contra a criança; hipocrisia religiosa das elites rurais.
8) Recursos Literários: A ironia apresenta-se como figura de linguagem mais evidente.
9) Personagens: D. Inácia, Negrinha, a criada, duas sobrinhas de D. Inácia.



OPRESSÃO E PRECONCEITO
Prof. Sergio Manoel Rodrigues

            A partir do título dessa obra de Monteiro Lobato, nota-se, pela utilização do sufixo –inha, o tratamento pejorativo dado à personagem principal no decorrer do conto, apresentada como “[…] uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados”. (LOBATO, 2000, p. 09). Características estas que não revelam apenas as características físicas da menina, mas também sua condição social e seu constante estado psicológico.
            Negrinha é vítima de um meio social injusto e preconceituoso, cujos padrões se valem da submissão dos mais fracos e da hipocrisia. Dona Inácia, a dona da fazenda, representa isso, pois enquanto agride a menina, caracteriza-se por seu status e suas falsas virtudes: “Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu […] Mas não admitia choro de criança”. (LOBATO, 2000, p. 09).
Observando a caracterização física e psicológica dessas duas personagens, pode-se chegar à seguinte oposição:

D. Inácia = adulta, rica, branca, opressora, gorda, “dona do mundo”, “virtuosa”
X
Negrinha = criança, pobre, negra, oprimida, magra, “atrofiada”, “peste”

Quadro: posição social das personagens.

            Com base no quadro acima e considerando os estudos acerca das narrativas literárias, os seres ficcionais do conto podem ser vistos como personagens-estado, já que nestas “[…] os dados atributivos e designativos passam a ser invocados na constituição do ser ficcional, privilegiando-se estes […] supõem[-se] a presença de um enunciador que os manipula […]”. (SEGOLIN, 1999, p. 61). Essa narração propõe tal concepção de personagem, baseando-se em caracteres físicos e psicológicos, na qual ambas são tratadas de formas bastante diferentes: a começar por suas denominações, enquanto uma possui nome e até forma respeitosa de tratamento (D. Inácia), a outra atende apenas por uma alcunha (Negrinha); uma usa da razão e é bem vista pela sociedade, já a outra é inocente e humilhada por todos.
            No entanto, as duas personagens pertencem a um mesmo contexto sócio-histórico do Brasil: “Lobato situa a história de Negrinha em um tempo em que a escravidão havia sido abolida por lei – mas leis não têm força para abolir costumes culturais […]”. (BIGNOTTO, 2006, [s.p.]). Desse modo, percebe-se que D. Inácia não se adequou à abolição da escravatura e Negrinha continuava escrava. Por isso, a menina guarda as marcas da hostilidade, que chegam ao ápice da violência, seja pelas agressões físicas, pelo desafeto ou pelos castigos que recebe dos habitantes da casa-grande:
            Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão […] Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata choca, pinto gorado, mosca morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa ruim, lixo – não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam […] O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. (LOBATO, 2000, p. 10-11).
            A não-identidade da menina demonstra que ela não é considerada um ser humano pelos demais, mas sim um objeto, sobretudo um animal que não possui alma e precisa ser domesticado. Ela não pode andar pela casa, brincar e, nem mesmo, falar, segundo Lobato (2000, p. 10), “[…] feito um gato sem dono, levada a pontapés […] que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas […]”, pois seria castigada pela realização de um de seus atos, quando, por exemplo, é forçada a engolir um ovo fervendo como forma de castigo por uma de suas travessuras: “Negrinha abriu a boca como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água ‘pulando’ o ovo e zás! na boca da pequena […]”. (LOBATO, 2000, p. 14).
            Nesse sentido, deve-se dizer que, inicialmente, Negrinha pode ser considerada uma personagem monológica (BAKHTIN apud BEZERRA, 2005), devido às suas características individuais, pela aceitação de sua situação miserável e por não ir contra a realidade em que vive, o que equivale à não-ativação de pontos de vista questionadores. Logo, essa primeira etapa da personagem mostra toda sua passividade diante das crueldades do preconceito e das desigualdades sociais.
            Entretanto, há no texto uma reviravolta dessa personagem. Negrinha, até então a única criança da casa, passa a conviver com duas sobrinhas de Dona Inácia. As duas garotinhas representam o mundo burguês, já que são descritas como louras, ricas e possuidoras de brinquedos caros. Elas, em alguns aspectos, assemelham-se à Negrinha, pois são crianças apresentadas apenas por seus atributos físicos. Todavia, as sobrinhas comportam-se conforme as normas de uma época e de uma classe social: “Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade. – Como é boba! disseram. E você como se chama? – Negrinha. As meninas novamente torceram-se de riso […]”. (LOBATO, 2000, p. 17). É nesse deboche inocente que se percebe a incorporação de um julgamento social, peculiaridade esta que Negrinha não possuía até então. Quando Negrinha se depara com as duas brincando na sala, entra em contato com outro universo e adquire uma consciência individual:
[…] Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu – alegres, pulando e rindo […] Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado – e findo o seu inferno – e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos o som cruel de todos os dias: ‘Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga?’ […] Brincar! Como seria bom brincar! – refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha […]. (LOBATO, 2000, p. 15).
            A pobre órfã entra em outro estágio, devido ao conflito consciente em relação a si e ao mundo, ou seja, é a tomada de consciência por ela mesma. Desta forma, transforma-se em uma personagem dialógica (BAKHTIN apud BEZERRA, 2005), cuja voz interior faz questionamentos e reflexões acerca de sua condição como ser humano. Imediatamente, a menina passa a externar seus pensamentos: “Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo […] – É feita?… perguntou extasiada”. (LOBATO, 2000, p. 16-17). Nesse trecho, em que o autor coloca voz na boca de Negrinha pela primeira vez no conto, ela assume a consciência de toda criança e sente-se gente: “Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma – na princesinha e na mendiga […] Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma”. (LOBATO, 2000, p. 19). Portanto, a boneca é para Negrinha a representação da igualdade, da liberdade e da humanidade, por isso, quando as sobrinhas vão embora e levam consigo a boneca, a menina morre triste e solitária ao se encontrar da mesma forma lastimável como vivia antes.
            De acordo com a classificação de Forster (apud JUNIOR, 1995), Negrinha é uma personagem redonda (esférica) – característica esta que se atribui aos seres ficcionais que sofrem uma alteração de caráter durante a narrativa –, devido à sua conscientização, visto que essa personagem lobatiana, por meio da complexidade de suas características psicológicas que se concretizam no enredo do conto, humaniza-se dentro da trama como representante de três grupos sociais brasileiros: o escravo, a mulher e a criança, cujas trajetórias na História não foram bem sucedidas. Portanto, como afirma Bignotto (2006, [s.p.]), “[…] Negrinha […] não tem nome porque é uma multidão” e, dessa forma, nota-se a representação da realidade e do pensamento do homem de uma época.
            Quanto ao narrador de Negrinha, este se apresenta como extradiegético, que, conforme Segolin (1999), tal classificação designa um narrador que conta uma história que não é a sua, e, no caso desse conto, o discurso irônico presente no foco narrativo é recorrente, exemplificando: “A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fôra senhora de escravos […]”. (LOBATO, 2000, p. 12). Nesse sentido, percebe-se que esse tratamento dado ao narrador serve como uma forma de denunciar os problemas sociais presentes no contexto em que as personagens estão inseridas. Contudo, a discursividade desse foco narrativo mostra-se polifônica, haja vista que as vozes narrativas envolvem-se em uma interação:
            Uma criada abriu-se e tirou os brinquedos. Que maravilha! Um cavalo de pau!… Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais… Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos… que falava ‘mamã’… que dormia […]. (LOBATO, 2000, p. 16).
            A polifonia desse conto, como ocorre na citação acima em que a voz do narrador funde-se às reflexões de Negrinha, equivale ao enfoque das manifestações do mundo interior das personagens ou, segundo BEZERRA (2005, p. 193), “[…] à libertação do indivíduo, que de escravo mudo da consciência do autor se torna sujeito de sua própria consciência […]”. Assim, nesse conto de Monteiro Lobato, a protagonista se antropomorfiza por completo ao assumir um fluxo de consciência próprio, tornando-se plural perante um mundo transformado pelas mudanças sociais e ideológicas.


Nenhum comentário:

Postar um comentário